quarta-feira, 22 de outubro de 2014

CAJUS, VERÕES E JANEIROS

Como bem se sabe, contar cajus é uma maneira poética de se dizer que alguém está ficando velho. É algo como contar verões, janeiros, enfim, todas essas formas que as pessoas encontram de amenizar o que já bate à porta. Contar cajus é uma forma interessante de suavizar a presença do inevitável fantasma do fim da vida.
Na verdade, quando dizem que a gente vem ao mundo sem nada estão mentindo para nós. Não querem que convivamos com a justa medida dos dias, essa coisa que chamam de expectativa de vida e da qual não podemos escapar, embora possamos prolongá-la. Todos nós já nascemos com um relógio que corre ao contrário. Já nascemos com a marca do tempo e disso não adianta fugir.
É até jocoso pensar que fazemos tantos projetos todos os dias. Agendamos reuniões, estudamos, fazemos relatórios, sempre com a ilusão de que estamos crescendo, evoluindo, fazendo mais, ganhando mais. Temos a impressão de que elastecemos nossa linha do tempo. Tudo isso nos dá uma visão equivocada de que somos quase deuses deste mundo, sempre podendo mais e fazendo melhor.
A bem da verdade, é preciso esclarecer: nós somos reles mortais. Por favor, coloque os seus pés no chão e encare a realidade. O passar dos dias já carrega aquilo a que muitos denominam uma tragédia anunciada. Você sabe qual é. Não preciso detalhá-la. Todos nós passaremos por ela um dia. Não se desespere, não grite, não puxe os cabelos: sim, você é finito.
Veja bem, meu bem: quem disse que isso é ruim? Largue esses óculos escuros que te fazem enxergar a finitude como algo tão fúnebre – isso não foi uma piada, e eu até admito que ela realmente tenha alguns tons disso – e passe a correr para aquela porta do fim da linha com mais tranqüilidade e sensatez.
Nós não podemos fugir dela. Mesmo que não queiramos, a esteira do cotidiano nos conduz para o outro lado de um muro que jamais conheceremos, pelo menos não agora. O que você, eu, todos nós podemos fazer é viver como se realmente não houvesse amanhã. Agendemos menos e entendamos mais. Corramos menos e amemos mais. A vida nada mais é que esse jogo de pesos e contrapesos, um equilíbrio eterno entre devoções e obrigações.
O que eu quero mesmo dizer é que seria um tédio se não tivéssemos os dias contados. Não fosse assim, para quê cultivaríamos amores se jamais teríamos um “até que a morte nos separe”? Jamais seríamos capazes de entender a dor de uma partida. Nunca saberíamos ao certo o que dizer diante da fatalidade. Aliás, seríamos realmente menos humanos e mais deuses. Talvez por isso a serpente, invejosa, tenha nos tentado e concretizado seu intento na mordida que nos tornou findáveis.
Se contar cajus é uma forma delicada de dizer que todos terão um fim e que provavelmente muitos dos que lêem esse texto justamente hoje, quando está sendo publicado pela primeira vez, não chegarão ao próximo século, também é uma maneira de abrir nossos olhos para uma das belezas da vida. E essa beleza é a poesia que se encontra no âmago do eterno risco, sabendo-se que a dor da perda poderá ser a prova de que realmente se amou o que se foi.

segunda-feira, 30 de junho de 2014

MULHER É UMA DROGA

               Eu confesso: não gosto de mulheres. Para falar a verdade, acho as mulheres uma droga. Abro ao mundo meu segredo, à revelia do que podem dizer os machões e as puritanas. Descobri isso muito cedo, mais que o que poderia descobrir qualquer outro homem, mas não sinto lá muita culpa. Não sinto nada além de indiferença diante do meu gosto um tanto excêntrico.
          Não gosto mesmo de mulheres. Simplesmente as adoro. Mulher é uma droga porque nos hipnotiza e embasbaca. Talvez eu pense assim porque tenha crescido rodeado por elas. Foram tantas ao longo dessa minha curta odisseia no universo! Por onde quer que eu caminhasse, lá estavam elas: a apresentadora de programa infantil pela manhã; a repórter investigativa no jornal da tarde; a mocinha da novela das oito que sofria por seu grande amor. Lá estavam mãe, avó, tias, professoras, todas numa variedade quase que inumerável, indescritível.
             Na verdade, até hoje elas são muitas. Acredito mesmo que as mulheres invadiram o mundo ganhando todos os dias uma guerra que às vezes é bem particular, levando adiante uma rixa que alguém um dia criou entre elas e nós, seus eternos súditos e dependentes – nós, homens. Proliferaram-se pelos escritórios, hospitais, salas de aula, estúdios de tevê, estantes de livros, vernissages.
           Apesar disso, o que nunca despertou muito interesse da minha parte foi o tipo garota-propaganda de comercial de cerveja, aquela moça vestindo camisetinha branca, completamente molhada e só com a parte de baixo do biquíni, que faz efervescer as veias masculinas. Podem me atacar pelo que vou dizer agora, machistas, mas na perfeição da bonitona que oferece bebida existe um quê de trivialidade, de fugacidade, de tédio: por trás do conjunto, existe uma beleza cansada que fermentou com a levedura e passou do ponto.
                Todo mundo, por mais leigo que seja, gosta de uma boa obra de arte, seja um filme, uma tela ou um clássico literário, e a razão é simples: amamos tudo que nos faz transcender, que nos eleva com um simples olhar a patamares jamais imaginados antes. Ora, quem disse que as mulheres não são arte? Mulher é música, é poesia, é visão e beleza. Mulher é êxtase. É um novo entorpecente que inventaram para nos paralisar enquanto exercem o controle do mundo.
          Gosto de mulheres que são obras de arte, não pela escultura de carne e osso, mas pela concepção interna e pelo mistério que trazem. Superficialidade não atrai ninguém. Errou quem disse que beleza não põe mesa, mas só isso não basta: é preciso ter o prazer de sentar-se diante dela. Aparência não é lá grande coisa. Ao fim e ao cabo, o que todos querem é uma boa conversa com elas, regada a profundas gargalhadas, mesmo que tudo se resolva na mesa do bar.
           Mulher boa, para mim, é mulher que anda como se carregasse nas veias o sangue de uma legítima descendente de Capitu. Viro o pescoço para olhar quem já tem na pele a incógnita por natureza. Não, não é ser vulgar. Não é querer possuir, com um desejo impetuoso e agressivo: giro a cabeça para admirar, para entender, para decifrar. Mulher boa é aquela que se torna uma pulga atrás da orelha de qualquer homem – de qualquer um mesmo, até daqueles que não se dedicam à causa.
       Mulher é definitivamente uma droga porque vicia. Não há como viver sem injetá-las cotidianamente na veia. Talvez eu nunca seja capaz de entender o que faz com que nós, homens, não gostemos das mulheres, mas as adoremos, fazendo delas verdadeiras deusas. É provável que nenhum de nós possa, estando com alguma delas, enxergar qualquer coisa a um metro de nossos narizes. É natural. Dizem mesmo que toda droga entorpece.

quarta-feira, 25 de junho de 2014

LITTLE GYPSY PRINCESS

Foto: Cairo Brunno (26.05.2014)
Sentou-se à mesa depois de arrumar os cabelos loiros atrás da orelha e recostou a cabeça na mão, preocupada. Percebi mesmo, quando sentei a seu lado, que havia ansiedade em seu rosto, embora não parecesse uma inquietação das mais profundas, daquelas que movem a humanidade a fazer descobertas incríveis e a inventar obras faraônicas. Era uma nuvem passageira, uma ressaca machadiana, um tédio em seu olhar que a deixava ainda mais encantadora.
- Hoje é o meu último dia com a idade na casa dos dez, deixou escapar com sua voz aguda.
Ouvi aquela frase e a digeri mentalmente, ainda custando a acreditar que o peso que seus olhinhos miúdos escondidos sob seus óculos vintage carregavam devia-se ao novo ano. Sondei sua expressão enquanto ela desfiava as contas de seu rosário muito particular. Tensa como toda mulher, teria medo da velhice, das rugas ou de não encontrar o homem de sua vida?
Foi mais forte que eu a lembrança de quando completei vinte anos, ou melhor, de quando eu também tive meu último dia com a idade na casa dos dez. Até então, escrevia romances tolos, ingênuos, e criava personagens que, muito embora clamem hoje para deixarem as gavetas de minha escrivaninha, permanecem trancafiados nelas. Meus últimos dias na casa dos dez foram, porém, mais quietos e menos intensos sem a adrenalina de viver no fio da navalha das responsabilidades que a maturidade exige.
O fato é que olhar para trás depois de ouvir a preocupação da menina-mulher diante de mim a respeito de sua nova idade foi um bom exercício. Foi como revirar velhas fotografias dentro de uma caixa de recordações. Enquanto aguardávamos nossos próprios compromissos, vi-me desfilando diante de mim mesmo com minha ansiedade e meus sonhos a tiracolo, aguardando a superação das fases difíceis da vida adulta e atingindo a glória através do sucesso, uma coroação justa para quem apenas vive.
Aquela menina era eu mesmo bem diante dos meus olhos, e talvez por isso eu fazia questão de admirá-la naquele momento. Não tínhamos lá léguas etárias de distância um do outro; éramos mais próximos que o que se possa imaginar, mas eu queria ensiná-la e protegê-la. Não, não era amor. Não era nada corporal, físico. Era algo equivalente à fraternidade, a um desejo oculto de vê-la sempre, como se fosse uma obra de arte caminhando sob o sol forte da cidade.
Seus olhos pequenos agigantavam-se em meus momentos de fraqueza, quando se aproximavam de mim e mostravam que aquele corpo magro e longilíneo nada mais era que o casulo que guardava sua experiência, a qual era, contraditoriamente, precoce. Da vida, certamente sabia mais que eu. Seus conselhos eram sempre precisos, certeiros e afiados. Não ou sim, eram essas suas palavras de ordem. Seu dicionário não comportava as palavras morno, frio, quieto ou qualquer outra que expressasse serenidade e sossego.
O que a tornava tão linda era uma incógnita para mim, e eu queria descobri-lo naqueles instantes em que a observava a fundo e em silêncio. Poderia ser seu gosto por cinema, por cachorros, por fotografia e por indie rock. Poderia ser sua imaginação muito fértil e sua afinidade com leituras consagradas. Poderia ser sua pouca afeição a leis e o gosto em excesso de liberdade. Poderia ser simplesmente algo de seus trejeitos de estrela de Hollywood dos anos 60, uma Audrey Hepburn loira e pós-moderna, filha do sol do Equador.
Talvez não fosse nada daquilo – nem Audrey, nem cinema, nem fotografia. Talvez fosse só seu olhar de Holly Golightly, não com a sensualidade e a ânsia por sucesso e fama daquela mulher que se pretendia de luxo, mas a beleza do olhar e a elegância que a inocência impõe. A menina que aparecia a mim beirando uma nova idade era naquele instante a fotografia exata de Capitu e Ceci, ambas no mesmo plano, num misto de enigma e doçura. Com sua longa saia lilás, seus longos cabelos loiros e a pele muito branca, era minha little gypsy princess, tão frágil que chegava a ser um bibelô.
- Fique tranquila, disse eu, tentando desfazer a nuvem que cobria seu olhar. A sua vida começa mesmo amanhã.

segunda-feira, 16 de junho de 2014

DESAMOR

Foto: Cairo Brunno (07.06.2014)
                Aonde você vai a essa hora? Não gostou da comida? Não gostou do perfume novo que eu comprei? Está fazendo as malas porquê? Você vai embora? O que eu te fiz? Eu fui a mulher mais honesta dessa cidade inteira. Lavei tuas roupas, te preparei jantar, segurei tua barra penhorando meus brincos de ouro quando te faltou emprego. Não houve briga nem desassossego. Porquê? É outra não é? Qual o nome dela? Qual o nome dessa desgraçada que está te tirando de mim?
                Vem aqui, vem. Lembra que eu te amo? Lembra que você e eu juramos ser um do outro enquanto caminhássemos sobre a terra, por pior que fosse? Quantos vendavais já enfrentamos, me diz? Quantas vezes já passamos por momentos mais dolorosos? Quantas vezes já passamos fome, frio, já ficamos descalços e nus mas mesmo assim permanecemos um ao lado do outro? Tem dedo de mulher nessa história sim, eu tenho certeza. Eu tenho faro para descobrir essas coisas.
                  E se eu descubro? E se eu encontro você com outra por aí? O que eu faço? Olha pra mim, Chico! Eu não sei ler, não sei escrever, não tenho estudo nem tenho dinheiro. O que é que eu vou fazer sem você? É difícil enxergar que você é a minha vida? Será que você não enxerga? Você é homem, é forte, é bruto como um touro. Pode trabalhar, pode carregar madeira, abrir estrada, mas e eu? Vou fazer o quê? Mesmo que eu trabalhe em casa de família, lave e passe, vai faltar o principal, que é você.
                Não vai! Fica aqui, homem! Não sai por essa noite fria procurando amor, que você já tem aqui dentro. Não sai procurando outra cama se a tua já está tão quente. Não vai se satisfazer em outro corpo, não. Pensa bem. Se ela te aceita desse jeito, quem garante que não vai aceitar outro que também seja casado, que também tenha família? Olha bem pra mim. Eu imploro, ajoelhada diante de ti porque você se tornou o meu deus. Não vai. Fica mais um pouco. Fica mais uns dias, pensa, pesa os fatos. Por favor!
             Pois muito bem. Se você quer ir, a porta está aberta. Eu tentei te prender comigo aqui deixando livre a tua saída. Se você prefere arriscar a sorte a ficar comigo debaixo do nosso teto, eu suporto o solavanco de te ver cruzar cada umbral até chegar à rua. Mas escuta bem o que eu vou dizer, Chico. Nunca mais esse corpo vai ser teu, ouviu bem? Nunca mais. Você nunca mais vai se saciar em mim. Eu deixo todos os homens do bairro, do país, do mundo se servirem no meu sexo, mas você não. E eu ainda hei de te ver feito cachorro correndo atrás de mim, louco, alucinado de desejo e tudo que eu vou fazer é chutar lama na tua cara e te atirar pedra nos lombos.
            É isso que vai acontecer, está me entendendo? Agora vai. Vai! Vai encontrar naquela vagabunda o que você não encontra em mim por não saber procurar. Mas ainda haverá mãos que vão saber correr cada poro meu e bocas pra tirar um mel que na tua terá gosto de vinagre. Essa mulher que um dia já foi tua vai ser de muitos outros e todos vão saber que você nunca foi homem. Todo mundo vai saber que você nunca passou de um moleque. Passa fora dessa casa antes que eu te abra com uma faca, antes que eu deixe viúva quem nem sequer te tem por marido ainda. Passa fora! Passa fora!

segunda-feira, 9 de junho de 2014

A VELHA ANDARILHA

Foto: Cairo Brunno (07.06.2014)
               Faminto e com muita sede, entrei na padaria envidraçada de um cruzamento movimentado no centro da cidade. Eram três da tarde. Segui imediatamente até a geladeira e saquei um suco de laranja. Caminhei até o balcão e pedi à mocinha com touca branca nos cabelos uma bela empada, bastante chamativa aos olhos e não menos dourada, que se destacava dos demais alimentos.
             Nem sequer esperei chegar até o caixa. Na fila para pagar mesmo, coloquei a comanda debaixo do braço, abri a garrafinha de suco, tomei um gole com a sede dos ermitões e mordi com intensidade o salgado, num quase beijo, querendo devorá-la de uma vez só. Meu organismo pedia seu combustível, isto é, a boa e velha comida. O que mais além daquilo que havia em minhas mãos poderia importar naquele instante? Que fossem pro inferno o conflito no Oriente Médio, as denúncias de corrupção, a pobreza e a miséria na África. Eu queria viver!
                Então, escutei o som da campainha tocando quando a porta de vidro se abriu. Barulho de rua, vapor e o bling bling seguiram-se imediatamente. Olhei. Olhei com os olhos de quem não liga para a fome, pra o desespero, para o despudor. Olhei como quem vê um espetáculo grotesco ao longe, de um belíssimo e imponente camarote, onde nada pode interferir além da fome.
                   Ela caminhou a passos muito lentos e fechou a porta logo atrás de si, retornando o silêncio e o zunido leve do ar refrigerado. Parou por alguns segundos e observou tudo ao redor com seus olhos cansados, de quem muito viveu e padeceu mais ainda. Trazia nas mãos uma sacola de plástico muito grande, cheia de bugigangas que possuíam intimamente um valor que dificilmente se poderia calcular.
                   Com os passos curtos de uma velha de sua idade, aproximou-se da moça à minha frente na fila. Perguntou se ali havia comida. Ouviu resposta positiva com uma voz compadecida da outra. Remexeu os objetos do interior da sacola e tirou dela, como da cartola de um mágico, outra sacola, recheada de papéis amarelados e cartões velhos, um dos quais – vi porque a observava com uma curiosidade magnética – estava adereçado com a logomarca de um banco.
               Perguntou, passando a mão calejada pelos cabelos brancos totalmente desalinhados, se alguém ali poderia auxiliá-la em um saque. Contou-nos que vinha de longe, mas que não queria moedinhas, fruto de mendicância; tinha ela própria alguns trocados guardados e precisava retirá-los para se alimentar. Ninguém se habilitou. Eu mesmo não. Àquela altura, eu já havia me tornado um turbilhão de emoções indescritível.
                  Enquanto a observava caminhando no interior da padaria com toda a vagarosidade possível, com toda a calma de quem sabe que não há mais nada a esperar da vida além da consequência última dela própria, efervesceu em mim uma vontade ímpar de toma-la nos braços, acolhê-la numa cama cheia de guloseimas e contar histórias que ouvi ao longo de toda uma vida, até que seus olhinhos doentes se fechassem, num descanso prolongado que entraria noite adentro.
                 Subiram lágrimas quentes – essas são as mais sinceras e mais gostosas de se derramar – e eu as reprimi instantaneamente, tomado de alguma vergonha. Era aquela velha mulher a mãe de alguém? Que histórias poderiam existir por trás daquele monte de pele, carne e ossos, guardadas dentro de seu coração enferrujado? Qual seria seu nome? Qual seria seu destino? De onde vinha e para onde poderia – querer – ir?
              Vi quando se deslocou sempre com sua sacola até o banheiro. Demorou-se um pouco ali dentro e saiu novamente. Admirou o balcão de empadas e ali entendi que não existiam trocados, nem fruto de mendicância, nem qualquer moeda admissível; existia, naquele corpo frágil de uma caminhante experiente e cansada de lutar cotidianamente pela sobrevivência no mundo do muito com poucos, o fruto da fome, do desespero, da incerteza. Existia o medo de sucumbir ao vazio da carne na próxima esquina. Existia a dor de devorar-se a si mesma pela ausência de bondade.
             Enfiei a mão nos bolsos e procurei algo além do pouco que eu tinha comigo – moedas contadas, uma garrafa vazia de suco de laranja e um lenço vazio com restos de empada – para que pudesse aplacar aquela aflição. Nada. Era eu também um caminhante que seria devorado por si mesmo. O que poderia importar minha condição de fragilidade anterior, no entanto? Eu tinha uma casa. Tinha uma família. Havia uma fruteira sortida na mesa da sala quando saí para o trabalho cedo pela manhã.
              Soltei as moedas e a comanda sobre o balcão de vidro do caixa. Joguei na lixeira as embalagens que havia em minhas mãos. A balconista catou meu dinheiro com uma avidez louca, um gesto mecânico de quem sobrevive de contar o que jamais será seu. Observei, enquanto aguardava ser liberado, o silêncio e o desprezo da mocinha de touca branca no balcão de empadas. Permanecia passiva diante da fome da pobre velha, que se mantinha de pé admirando os alimentos. Mantinha-se imóvel diante daqueles olhos famintos.
                Eu não poderia ver mais daquilo. Com os ombros pesados e um nó na garganta, deixei a padaria e apareci na rua. Não consegui olhar para trás. Havia barulho e vapor, mas nada mais interessava. Observei o relógio de pulso: três e quinze. Estava na hora de voltar ao trabalho para contar aquilo que jamais seria meu.

segunda-feira, 2 de junho de 2014

A DESPEDIDA

Foto: Cairo Brunno (27/12/2012)
Quando dei por mim, eu estava às dez da noite de um domingo abraçado a você na calçada do meu prédio. Foi um contato que se prolongou por alguns segundos a mais que o habitual. Nossos braços eram quentes, ávidos por envolver aquele outro corpo que tínhamos à disposição como se ele fosse a salvação das nossas almas, a redenção de todos os nossos pecados e o remédio para todas as nossas feridas abertas por outros amores.
Na sexta-feira, dois dias antes, nós havíamos ensaiado um abraço como aquele depois de comermos uma pizza num restaurante próximo. A diferença é que naquele domingo tudo acabou – ou teria começado? – com um beijo... O percurso dos nossos lábios foi bem lento, nada ensaiado. Primeiro, tocamos o pescoço um do outro; em seguida, o rosto e... a boca! Eu fui ao céu com aquele beijo... Era tão perfeito! Era uma boca pequena, bem desenhada, tão boa de beijar que eu só queria ficar um pouco mais.
Você tinha uma voz tão perfeita e um cheiro tão humano que eu fiquei excitado. Logo eu, que ainda era completamente inocente, pronto a casar de branco. Nunca havia sequer mostrado meu sexo a outra pessoa e já estava entrando em ebulição com um simples abraço – aliás, eu sempre tinha aquele tipo de reação quando te abraçava, e se você lembrar com detalhes vai ver que eu sempre afastava meus quadris dos teus pra que o contato perigoso daquelas nossas regiões não ocasionasse uma explosão...
Te pedi pra entrar no prédio. Você aceitou. Namoramos, você no meu colo – Eu desejei tanto esse momento! Tanto! – e eu, tímido, olhando de relance pras janelas dos outros apartamentos com medo de sermos flagrados. Eu tinha você nos meus braços, sob meu domínio. Eu, que depois de tanto jogar contigo, com a tua paciência, de fingir que não queria, fazendo de tudo pra te dispensar e atrair numa só tacada, tinha você aos meus pés.
Naquele momento eu nunca quis ter outro alguém. O que eu mais queria era ter aquela tua blusa branca toda rota pra mim. Queria a blusa pra poder dormir abraçadinho a ela, como se fosse uma extensão da tua pele quente. Assim, e somente assim, eu achava que sentiria teu abraço quando não estivéssemos juntos...
No dia seguinte, você me levou pra conhecer um novo tempo na minha vida. Achei engraçado o nome do teu bairro... Quando você me falou dele eu achei tão sugestivo, porque eu agora estava indo para um novo instante da minha existência. Tudo que você perguntou no caminho, nós dois sobre a moto, foi “Você confia em mim?” Eu respondi que sim, e pensei comigo: acha que vai fazer o quê, me raptar?
Você apontou a tua casa. Disse que não havia tido tempo para limpá-la e que em função disso íamos ao fim da rua, para a casa de um amigo que estava viajando para Brasília. Vimos um filme. Comemos. Namoramos. Você pediu que eu tirasse minha camisa porque queria sentir minha pele. Fizemos isso três vezes naquela semana. Você me presenteou com uma gravata e pediu que eu usasse quando conseguisse um trabalho num escritório.
Mas, por algum motivo, comecei a me sentir inseguro. Talvez porque um dia você foi a um bar com seus amigos e me falou de um cara que usava Lacoste e te paquerava. Talvez por te ver olhar com desejo para outros homens por onde andávamos. Talvez por um dia você ter dito a um amigo teu que falava de um rapaz “Eu quero ele”. Talvez pelas fotos do teu passado com outro homem ainda nas tuas coisas...
Em casa, diziam que você queria aventura, que queria se aproveitar de mim e me descartar. Como dito por uma personagem no filme que assistimos no primeiro dia de namoro, eu era o “caso de verão”. Era? Era. Na minha cabeça era. Comecei a imaginar você beijando o rapaz que te rondava, sempre investigando o nível de seriedade do teu namoro comigo; ou quem sabe voltando pro cara que um dia te mandou embora e que depois reapareceu pedindo uma ajuda pra salvar a própria loja; ou mesmo sentindo novamente atração pelo cara que um dia beijou e que agora era um colega de trabalho.
Fiquei paranoico. Fiquei frágil. Pena você nunca ter entendido que eu sinto medo, ainda sinto um frio na barriga por conta de uma viagem tua a trabalho. Inseguro, te liguei agora há pouco pela sétima vez para ouvir tua voz. Você disse que eu precisava me tratar. Disse que nosso amor foi uma pena. Disse que queria a sorte de um amor tranquilo, com sabor de fruta mordida... Antes, disse que encontraria alguém e que me diria, e que só depois de me comunicar beijaria – e eu completei mentalmente: abraçaria, faria café, postaria fotos, telefonaria, responderia nas redes sociais, tudo que não fez comigo... E eu, tão feliz por te ter, sem prever essa confusão toda, enviei por e-mail, no começo do dia, antes de ir correr no calçadão, uma lista de coisas que eu adoraria fazer contigo: tirar fotos, viajar pra Barcelona, andar de mãos dadas...
Esperei uma resposta e veio outra.
Eu não queria entregar os pontos, mas as tuas palavras foram tão sinceras que não me resta outra saída. Mas me responda, então: e a nossa viagem pra Europa, quando eu estivesse bem de vida? E o nosso apartamento? E a nossa viagem no universo do vestuário e da decoração infantis pro quarto do nosso filho? E o nosso filho? Eu não sei. Você vai viajar semana que vem e eu nem vou poder ligar. Me sobe uma angústia só de pensar que nunca mais vou te ver de perto, que um dia vai haver outro no teu coração e que você vai trocar meus retratos pelo de um outro alguém.
Um dia, enquanto assistíamos ao capítulo da novela das nove em que o casal principal rememorava suas melhores recordações, você disse que não levaria nenhuma boa lembrança da nossa relação. Mas foram minúcias tão doces! Como num filme, acumulam-se em camadas loucas nossas aventuras. Lembra quando você saiu do quarto para ir ao banheiro e eu coloquei almofadas sob o edredom para te pregar uma peça?
Lembra ainda da primeira vez que fomos à tua casa e depois, quando voltávamos, pegamos nossa primeira chuva juntos sobre a moto? Eu te abraçava bem apertado, com frio e completamente ensopado, mas feliz por estar com você... Lembra quando trocamos alianças quando estávamos no ônibus indo pra São Luís? E de quando eu entrei no mar pela primeira vez e você, mesmo com seus braços finos, me segurou no colo?
Realmente espero que você seja muito feliz. Quanto a mim, não me iludo mais achando que em dez anos um dia poderemos nos encontrar em alguma outra cidade e que depois saiamos para conversar e ao fim do dia tudo recomeçar. Hoje, só quero que você encontre a tua felicidade e esse amor tranquilo com sabor de fruta mordida.
Sobre mim, eu te amo muito. Ainda, meu número de telefone deixará de existir. Não quero ter a esperança de que algum dia você vai me mandar uma mensagem sabendo que não o fará. Vou sentir muita falta de te pentelhar. Vou sentir falta do teu macarrão com queijo e de beijar teu pescoço antes de você dormir ou depois que você acordar.
Pensando bem, um dia vamos nos reencontrar sim, seja numa loja, seja num shopping ou num aeroporto. Que possamos ser tão cordiais quanto você presumiu naquele dia, mas bem menos artificiais e irônicos.
Te amo pra sempre!

P.S.: enterra aquele apelido. Ele era só seu. Vou enterrá-lo também. Será melhor assim.

segunda-feira, 26 de maio de 2014

CARTA

Foto: Cairo Brunno (17/12/2012)
               Querida amiga,

         Um oceano inteiro nos separa nesse momento. Você seguiu sua carreira. Agora é respeitada e admirada. Agora é exibida em canais de TV e seu rosto aparece em fotografias em páginas de jornal e colunas sociais. Sinto orgulho disso. Sinceramente, querida, sinto muito orgulho de ter sido mais um tijolinho para construir a escadaria que você teve de subir para chegar onde está. O problema é que toda essa euforia que trago no peito se confunde com uma saudade imensa, tudo isso se transformando num elemento louco e irreconhecível que me cega e me deixa como louco à espreita, esperando o menor sinal do nosso reencontro.
              Hoje é um dia frio. Aqui nesse país, aliás, quase todos os dias são frios. Às vezes, sentado perto da lareira, fico meditando sozinho escutando um velho compacto de Caetano Veloso enquanto recordo nossas brincadeiras nas idas tardes de curso universitário, quando não passávamos de quatro jovens sonhadores e cheios de esperança e um pouco de receio. Penso em nossas mãos dadas, em nossos risos largos, em nossas atividades em comum. Enquanto bebo o vinho tinto que você me enviou de presente, sinto que há dentro de mim aquela mesma chama que me tornava jovem demais, inconsequente demais.
                Mas não há mais tempo para ser tão jovem assim. Toda aquela juventude passou como um raio, um relâmpago, tão furtivo que nem me deixou perceber as marcas do teu rosto, os fios mais claros nos teus cabelos, as cores das tuas unhas. Tudo voou como se uma ventania voraz aparecesse repentinamente e levasse as pétalas daquela flor tão carinhosamente cultivada dia após dia. Restaram apenas fotografias, às quais agora me apego e torno quase deuses no altar da saudade.
              Perdoe-me se nem sempre eu pude ouvir seus lamentos. Há momentos em que me arrependo tanto por não ter podido oferecer meu ombro tanto quanto você me ofereceu o seu quando precisei! Há instantes em que choro baixinho lembrando todos os momentos que desperdicei com futilidades, numa busca louca e desenfreada por sucesso e satisfação, enquanto havia perto de mim um coração exemplar que transformava cada pulsação num sonho.
                 Hoje, somos um homem e três mulheres. Hoje, não nos vemos mais, não nos telefonamos mais. Hoje, cuidamos dos nossos filhos, dos nossos cônjuges, viajamos e fazemos projetos. Hoje, eu também continuo queimando meus pensamentos para escrever, e foi assim que entendi que, sob aqueles bambus que me causavam alguma alergia mas que mesmo assim eu adorava, ríamos tanto ao ponto de chorarmos porque não sabíamos ou não queríamos saber que um dia estaríamos tão distantes, tão desconexos.
                  O que importa, minha amiga, é que você não está sozinha. Eu não esqueci de você. Prova disso é que, mesmo com toda distância, você continuou adormecida aqui dentro, bem no fundo desse baú cheio de cacarecos que é o meu coração. É claro que a sua ausência deixou tudo mais frio, afinal, quando fomos dizendo adeus aos poucos você acabou deixando as janelas abertas e a neve e a chuva invadiram tudo. Mesmo assim, enxuguei as gotas que insistiram em molhar o assoalho e preservei com um cheirinho de lavanda as cortinas do seu cantinho.
                    Passo a passo, vou seguindo em direção a você. A cada 26 de maio, providencio um bolo minúsculo, acendo uma velinha, canto parabéns baixinho e brindo em sua homenagem enquanto recordo as surpresas que fizemos uns aos outros. Sozinho nesse apartamento tão grande para mim, rememoro os jogos de cartas, as ligações falsas vendendo cartões de crédito fictício, as correrias em tempo de provas, os hambúrgueres com suco de laranja naquele shopping que tanto frequentávamos.
                  Mais uma vez a saudade bateu e por isso agora escrevo essa carta, mas não vou chorar. Hoje quero rir. Você está aí, tão bem, tão viva, tão exuberante! Para quê me desfiar em lágrimas se o mais importante é que você permanece como antes? Hoje é mais um dia de velinha, de cantar baixinho e brindar em sua homenagem. Você tornou o mundo dos seus três amigos uma verdadeira enciclopédia, acrescentando significados e experiências. Nunca mais seremos os mesmos. Nunca mais.
                    Espero tornarmos a nos vermos em breve. A saudade que os dias corridos e a rotina louca trazem é imensa, mas é tão fácil tomar um avião e vir até aqui, não é mesmo? O amor que existe entre nós quatro não acaba assim, como se fosse escrito na areia da praia e a onda bravia apaga, agressiva. Nossa empatia é mais aguerrida porque somos irmãos. Um cuidaria do outro, lembra?
                 Onde viemos parar? Onde está você agora? Ao receber esta carta, responda com brevidade. Preciso ter notícias suas. Nada poderá me fazer sentir melhor. Se não for pedir muito, envie também fotografias de sua família. Quero conhecer seus meninos e a casa linda que você construiu com aquele closet cheio de sapatos que você tanto desejava ter. E lembre-se: você sempre será nossa menina, aquela insubstituível guerreira que veio ao mundo para vencer, apenas.
                  De quem lhe tem estima e apreço imensuráveis.

segunda-feira, 12 de maio de 2014

APAGADA

Foto: Cairo Brunno (08/04/2014)
          Embora não tenha podido vê-las flutuando dentro do carro, Ângela sentiu as palavras saírem da boca do homem como se fossem blocos sólidos de um metal frio e desesperadoramente cortante. Os automóveis da avenida, em alta velocidade, pareceram perder o ritmo enquanto ela processava cada letra, cada sílaba. A noite ficou mais escura, o ar ficou mais pesado e surgiu um nó na garganta que subiria pelo rosto até chegar aos olhos e se materializar naquelas gotinhas transparentes que ela sabia que se não contivesse dormiriam mornas em seu colo.
          “Você é apagada. Você é tão sem brilho!”, ele disse meio sem pensar, meio já ensaiado. Falou com firmeza, disparando as letras sabendo exatamente onde atingiriam, calculada a distância exata entre o limite de seus lábios e o outro coração que pulsava a seu lado. Ela sentiu que não houve arrependimento nem remorso. Havia apenas uma decisão obscura em proferir aqueles adjetivos tão complementares.
              Ângela calou-se por um momento. Arquitetou uma revanche, pensou em dizer que era exatamente daquela forma, que se conheceram mostrando as cartas na mesa e que desde a primeira conversa deixou claro que era trancada nos corredores de sua própria alma. Resolveu calar-se para além do momento. Permaneceu contida minutos a fio enquanto digeria a opinião do companheiro.
                   Aguardou pacientemente, enquanto seguiam até sua casa, uma retratação. “Ele sempre volta atrás”, disse em pensamento para si mesma. “Aguarde. O pedido de desculpas virá”. Seguiram pela avenida, quebraram numa esquina, seguiram pela ponte, depois por outra avenida, pegaram uma rua escura e asfaltada e finalmente pararam na casa de muro baixo e portão verde de madeira. Silêncio. O cheiro de terra molhada ainda persistia depois da chuva e aumentava a sensação de solidão.
                      “Boa noite”.
                    “Boa noite”, ela respondeu, num tom grave. Abriu a porta do carro para descer. Aquele foi, então, um momento quase eterno. Era sempre essa a sensação que tinha todas as vezes que brigavam porque era massacrada pela incerteza que o companheiro fornecia com seu jeito sempre sério, sempre disposto a comandar. Era quase eterno porque, enquanto descia do carro, apurava sempre a audição, tentando, sem olhar, antever algum movimento de mão ou de braço que insinuasse que ele a puxaria, daria um abraço apertado e diria que estava arrependido e que a amava.
                      Nada.
                    Apenas o som da cidade retornando ao seus ouvidos. A visão tornando-se a da realidade ao passo que a da cena imaginada se apagava muito mais. Pisou firme na calçada. Bateu a porta do carro. Esperou, enquanto abria timidamente o portão, o som agudo da buzina para que girasse o corpo e o visse fazendo um sinal com o indicador para que se aproximasse. Caminharia lentamente, então, como se estivesse enfadada de toda a história e perguntaria com um ar de tédio o que ele poderia querer ainda se já tinham se despedido. Ele pediria perdão pelas palavras e ela cederia, fingindo-se ainda de difícil e decidida, até beijarem-se e ele finalmente sumir na esquina.
                      Nada.
               O portão rangeu e Ângela entrou em casa. A cada novo passo, pé ante pé, via seu desejo tornando-se mais obscuro, mais enevoado, mais distante. Dezenove flores ao redor da passarela de pedra até a porta, havia contado mais cedo quando saiu para encontrá-lo na calçada, seis à direita e treze à esquerda. Amarelas e lilases. A cada flor que deixava para trás sentia que era mesmo apagada e sem brilho, que era um joguete nas mãos do homem que amava – amava-o realmente? – e que precisava urgentemente tornar-se uma mulher decidida como ele gostaria que fosse e como deduziu pelos relatos pré-namoro que sua antecessora certamente era.
                      Quando ele arrancou e sumiu dobrando a esquina, ela cruzou a porta e entendeu que não haveria pedido ou perdão. Estava, no fundo, cansada. Trazia as marcas de todas as culpas que ele lhe infligia manhã após manhã bem claras nos olhos manchados de negro, nos vincos perto dos lábios, nos cabelos brancos nascidos prematuramente. Era a causadora de toda briga. Era a pior de todas as namoradas que já houve na vida. Era a que às vezes tornava-se problema. Achou que dormir e não pensar em brilho era uma boa opção. Apagou todas as luzes da casa, cobriu todos os espelhos e fechou todas as janelas para não ver os postes na rua reluzindo mais que ela.
                 A insônia, porém, fez o telefone tornar-se uma extensão de seu próprio corpo. Outrora acessório, usado em vezes tão raras que se podia contar nos dedos, já não saiu mais do bolso enquanto rondava pela casa escura, e quando muito saía era para a mesa próxima, a estante, o braço do sofá. Ficou à espreita, esperando ligação. Deixou-se ser escrava de seu interlocutor, uma cativa resignada que minuto após minuto era arrastada pela onda de uma paixão violenta.
                     O jovem coração doeu quando, entre as dez e meia e as onze ele não ligou para avisar que já estava na cama. Para distrair-se, Ângela resolveu cuidar da casa no escuro mesmo. Perguntou-se a si mesma, durante sua atividade: “O que eu fiz de errado?” Pensou em todas as sutilezas, em todos os detalhes dos dias mais próximos vividos e não achou causa para a ausência, para a indiferença.
                     Subiu-lhe um ódio opressor que apertou o peito. Passou a torturar-se com cenas de outras ocasiões que ela mesma, sentindo-se artista, desenhou e dirigiu na cabeça. Imaginou o outro telefonando para os amigos durante o expediente mesmo, sentado à mesa do escritório, desfiando algum assunto por horas e horas enquanto os papéis chegavam até formar pilhas que para sempre o engoliriam. “Se ele pode ligar para toda essa gente, por que não para mim?”, indagou-se novamente a devota, a amante, a escrava.
                   Largou o serviço pela metade. Arrastou a poeira para baixo do tapete, esqueceu da casa, dos pratos, das roupas por esticar no varal e trancafiou-se no quarto. Deitou-se sobre a cama, abraçou o travesseiro com o braço direito – sempre com ele – e pôs-se a fazer cachinhos nos cabelos usando os dedos da mão esquerda. Fixou o olhar no muito branco do teto forrado a laje e pôs-se a imaginar que foi sempre a última, a preterida em outro coração. E chorou.
              Chorou aquela indiferença amarga de quem tanto amava. “Carinho alimenta carinho”, sussurrou como um consolo, um ópio subjetivo e romântico. Imaginou seu amor indagando, enquanto viam a novela, porque já estavam distantes àquela maneira e a si mesma dizendo aquelas palavras exatamente naquela ordem, embora, ainda que invertesse uma a uma, continuassem a ecoar que carinho alimenta carinho. Viu, delirante de paixão e sonhando às cegas, a grande amiga e disse a ela que um romance subsistiria a traições, à falta de amor e ao excesso de lascívia, mas jamais à indiferença. Jamais. Uma ligação que fosse, ainda que durasse cinco segundos, ainda que apenas uma e mísera, mas que ligasse!
                     Levantou da cama, foi à sala já tonta de agonia e sentou-se sobre o sofá, o telefone ao lado. Tentou ver tevê mas o menor movimento da brisa lá fora dava-lhe a sensação de ter recebido uma chamada. Teve o impulso de discar o número dele, mas ao rememorar outras palavras duras e secas como as que ouviu mais cedo – “Nunca mais me ligue tarde da noite que eu preciso acordar às seis para ganhar o meu!” – perdeu o ânimo e retornou ao quarto.
                   Tentou desligar o telefone num misto de raiva, desespero e revolta mas tão logo ocorreu a ela a possibilidade de o outro ligar desistiu da premissa de amenizar a ansiedade e voltou a esperar como se velasse por seu messias, seu deus, seu senhor. Ouviu música, leu poemas, tudo em vão, bem sabia, mas procurou ocupar aquele vazio que era a ausência dele. Queria tão somente tapar o buraco negro que a consumia na agonia daquela espera.
                     Então, à meia noite, o telefone tocou.

quinta-feira, 8 de maio de 2014

CONFISSÃO EM MAIO

Foto: Cairo Brunno (08/04/2013)
                 Por mais que você queira me acusar e deturpar os fatos tornando-me um algoz, eu já não sou mais o mesmo. Ainda que as ondas das tuas palavras duras se choquem contra as rochas da minha alma cansada e cheia de cicatrizes das tuas chibatadas, eu não quero mais ser o mesmo de antes. Não engulo mais a intolerância nem quero remediar ou diminuir a tua própria culpa atraindo para mim todos os teus pecados.
                Ontem à noite, enquanto escutava cada sílaba tua ao telefone, sentia que as palavras eram um passo lento em direção ao abismo de loucura e medo em que seríamos atirados quando trocássemos um adeus. Seria uma caminhada vagarosa e difícil, mas que já havíamos ensaiado tantas e tantas vezes que nos tornaríamos naquele instante guias de nós mesmos. Estávamos trocando um bom e velho tchauzinho disfarçado sob a forma de um seja bem-vindo novamente.
                Não desisti de nós. Não desisti. Apenas preservei em mim a umidade da alma, aquilo que me mantém unido e inquebrável, incorruptível, como se eu de barro fosse. Desisti, sim, da aridez do caminho ou das águas em excesso, aquelas da solidão e do medo, que me arrastavam feroz e tenazmente em direção ao vazio. Tanto te invejei por teu equilíbrio que hoje insisto nele, que agora é meu. Como numa gangorra, estou por cima, vendo paisagens ao longe enquanto tudo que te resta é me assistir.
               Já não quero mais toda aquela dor, nem toda aquela agonia das noites sem resposta ou mesmo a voz aguda da secretária eletrônica. Não quero mais aquela ânsia que me violentava e mortificava a cada ligação interrompida bruscamente pela tua intransigência, assim como também o era com cada momento de desprezo, com cada queixa não considerada, com cada instante de abstinência do teu sexo a que você me submetia propositalmente por não ceder aos teus caprichos no teu tempo certo. Quero agora a paz e a doçura das manhãs de sol de maio, aquela brisa fria do começo da manhã que traz o cheiro dos cravos pendendo no quintal.
               Digo que agora é maio. Semana passada, aliás, já era maio. Vi o mar, brinquei na praia, deixei meu corpo exposto ao sol e ao sal. Vi meninos correndo atrás de uma bola na areia. Vi a imensidão do céu encontrando o mar bravio das tardes de sábado. Senti saudades de casa mas também desejei ficar para sempre naquele corpo muito branco que se dividia em milhões de grãos muito pequenos. Vi ao longe grandes barcos que rumavam em direção a outros portos, como eu também poderia rumar seguindo a felicidade.
                 Agora que aos poucos estou arrumando as malas sinto uma euforia pueril latejando dentro de mim. Talvez seja aquela alma tão solapada durante algum tempo pela tua intransigência pululando por saber que finalmente encontrará a paz e a liberdade que lhe foi brutalmente roubada pela paixão arrebatadora que a carência fez germinar. Outro amor não nasceu, entenda. Tudo é culpa da liberdade, do desejo de voar, das asas que se abrem para o horizonte depois de tanta escravidão, de tanto cativeiro.
                Quero mais que sexo invadindo sexo. Quero mais que uma chuva branca explodindo de mim em direção ao teu corpo ou lábios entrecortando-se e irrompendo no prazer louco de um beijo. Mais que a salvação, quero sentir a brisa de maio enquanto caminho pela praia com a areia ainda fria.  Preciso experimentar, ir e voltar. Chorar não. Já chorei demais por coisas que não valiam a pena. Como poços rasos, meus olhos estão secos. Bem melhor para mim.
                   Amanhã, quando já não estivermos juntos, tomarei um ônibus qualquer. Sentarei na janela e reviverei, sentindo o vento no rosto, todo o prazer que pode existir em ser gente e enxergar a beleza em detalhes tão pequenos. Aí eu já não carregarei mais na bagagem coisa alguma do que é teu. Não precisarei ficar com uma mísera correia de uma sandália tua. Te deixarei optar pelo deserto ou pelas colinas. Seja lá o que me restar depois da tua escolha, será meu oásis, meu paraíso. Serei um rei em minha fortaleza ainda que meus próprios alicerces se abalem.
                    Serei rei porque tenho a mim. E não há no mundo séquito melhor.

segunda-feira, 28 de abril de 2014

ELE

Foto: Cairo Brunno (08/04/2013)

       Ele nunca havia entendido que abrir o guarda-roupa era muito mais que uma atividade do cotidiano. Abrir o armário era antes de tudo ser democrático, no sentido mais comum e pejorativo da palavra. Cada vez que descerrava as portas para selecionar uma vestimenta para o dia, estava dando a si mesmo a chance de escolher.
       Escolher. Era essa a palavra que cotidianamente o movia, embora ele nem mesmo soubesse. Quando puxava uma camisa amarela ao invés da lilás estava inconscientemente dizendo que era capaz de se dar uma nova aparência, distinta daquela advinda de outra cor de camisa. Assim, selecionar era a palavra que o conduzia por cada passo.
         Seguia dessa maneira todos os dias, sem pestanejar. Nunca pensou, porém, que todas as vezes que assim agia deixava um futuro para trás. Ao sair de casa com a camisa amarela em detrimento da lilás estava abrindo mão de novos comentários, de novas chacotas, de novos elogios, de tudo aquilo que seria gerado pelo simples ato de trajar uma camisa que não fosse a amarela.
           Dia após dia as camisas eram usadas. Não ficavam acondicionadas em ordem de cores ou sob nenhuma outra técnica de ordenamento. Simplesmente estavam ali, à mão, para que ficasse a seu critério selecionar. Também era assim com os óculos que usava, com as meias, com os suspensórios, com as calças e as cuecas.
         Foi numa manhã de setembro que teve um estalo. Finamente seus olhos se abriram e ele entendeu que, assim como as roupas, a vida também era repleta de escolhas. Eram elas que o construíam a cada amanhecer. A cada novo sol que nascia os olhos se arregalavam para simplesmente escolher.
              Daquele dia em diante entendeu que a vida nada mais era que uma eterna bifurcação, onde as estradas se desmanchavam sempre em duas, paridas que eram pela necessidade de oferecer caminhos distintos. Também dois dele olhavam para as duas trilhas, e ambos curtiam um luto momentâneo, pois sabiam que dali apenas um sairia vivo. Apenas um seguiria adiante. O que ficasse teria cumprido sua missão.
              O caminho que ele deixava para trás, contudo, não era apenas uma estrada desperdiçada: era também uma história não contada. O homem que se desmanchava como fumaça após a escolha da estrada mais conveniente era ele mesmo em algum momento de sua história; era ele mesmo que poderia ter sido mas, fruto de uma escolha, não foi.
               Finalmente, entendeu que seus pés jamais deveriam ter pressa para andar por caminhos com belas paisagens. Seus olhos podiam ver a beleza nítida de cada terreno, mas sabiam que também existiam armadilhas ocultas. Para não ter que desejar voltar no tempo e mudar o passado, começou a observar todos os dias o presente e projetá-lo no futuro.
             Descobriu que caminhos têm preços e entendeu que deveria contar as moedas que existiam nos bolsos para pagá-los. Haveria sempre uma dívida, fosse no caminho mais curto e belo, fosse no mais longo e árido. Não haveria escolha que não trouxesse dores e alegrias, mas somente ele poderia decidir a ordem em que elas se concretizariam. Tudo dependeria do caminho trilhado.

quinta-feira, 24 de abril de 2014

UMA DA MADRUGADA

            
Foto: Cairo Brunno (10/04/2013)

             Acabei de olhar o relógio de parede do corredor. É quase uma da manhã e eu ainda estou aqui, com os braços apoiados na janela, admirando a noite. Faz um silêncio quase infernal nesse apartamento. Todo mundo já foi dormir, mas eu ainda permaneço de plantão na vida com o telefone ao alcance.
            Lá embaixo, no estacionamento, está o meu velho Voyage preto. Ele é quase uma parte de mim, você sabe. Ele é quase uma parte da gente. Deu vontade de pegar as chaves e sair por aí escutando Paralamas até, quem sabe, te encontrar. Na verdade, eu te encontraria de propósito porque eu iria até a tua casa e jogaria pedrinhas na vidraça do teu quarto pra te acordar.
             Sabe aquelas coisas de filme? Pois é, isso de jogar pedrinha na janela até acordar o outro existe mesmo. O namorado daquela vizinha do apartamento da frente fez uma coisa dessas outro dia e eu achei interessante. É que eu estava estudando pra uma prova da faculdade à uma da manhã e ouvi o tec-tec das pedrinhas batendo na janela e caindo na calçada...
             O certo é que eu iria até a tua casa pra gente poder conversar dentro do carro ouvindo aquelas músicas dos anos 80 madrugada afora. Eu só gostaria de saber como foi o teu dia, com quem você conversou e como você está conseguindo controlar a alimentação por causa dessa história que surgiu agora de você ter dores no estômago.
             Eu te liguei agorinha e você me disse que precisava madrugar amanhã por conta do trabalho. Depois liguei de novo e você estava com os olhos secos, vendo tv. Eu fico me sentindo um incômodo. Um peso morto. É que eu sinto falta de companhia, de ter alguém pra perguntar como foi no ônibus lotado às seis e meia da noite, na hora do rush, e acabo ligando duas vezes a cada dez minutos.
             Na verdade, eu esqueço que você já tem casa, já tem emprego, já tem trinta anos. Eu esqueço que eu ainda estudo, ganho um salário, não uso barba pra economizar com salão e conto moedas pras cópias da faculdade, pra gasolina e pra Coca-Cola santa de todo dia. Eu esqueço que você me ama, que nós nos amamos, que brigamos todo dia e que sempre fazemos as pazes.
           É que eu te tenho tanto que eu tenho um medo sufocante de te perder. Não chega a ser um amor doentio, daqueles que levam a cometer loucuras que culminam em cadeia, mas ainda assim é um amor do meu jeito. Eu sei que eu tenho um jeito meio estúpido de ser e de dizer coisas que podem magoar e te ofender, mas é assim que eu sei te amar. Eu juro que não digo nada daquilo tudo por mal...
            Ontem, quando fui àquela loja de departamentos no centro da cidade, comprei um compacto da Marisa Monte. Fazia muito tempo que eu namorava o disco e nunca conseguia sair da loja com ele nas mãos, mas ontem foi providencial. Aquela nossa música estava lá. “Quando eu te ligar cantando aquela velha canção”... Ouvi hoje umas mil vezes e a cada uma delas a melodia tomava teu jeito, teu semblante, me fazia sentir teu cheiro...
               Aliás, eu ainda guardo um frasco do perfume que você e eu usamos quando nos conhecemos. Tem duas gotas bem no fim, mas vez por outra, quando a saudade bate, eu aspiro aquele cheiro doce e amadeirado que me lembra a tua pele naquele nosso começo tão bom e vem uma saudadezinha boa, uma vontade de fazer as folhas do calendário voltarem e tudo ser como era antes.
          Eu não sei o que é que você tem que não me beija nem me procura. Às vezes eu tenho a sensação de que você já tem outro em mente. Eu não quero ser cozinhado, levado com a barriga. Entrei nessa de cabeça pra ser amado e te fazer feliz. Ok. Muitas vezes eu quero apenas ser feliz, mas e todo o meu esforço pra te deixar bem, em paz?
            Você me perguntou outro dia se eu seria capaz de suportar todo o peso da tua popularidade caso alguém te assistisse numa das tuas peças e de repente surgisse o convite pra uma novela ou um filme e você aceitasse. Eu sinceramente digo que não. E você? Seria capaz de suportar o peso de ter um cara na porta do teu trabalho todo dia às seis da tarde te buscando com o filho de vocês no banco traseiro do carro? Agora não, que tudo é regrado, mas e quando eu for aquele homem de sucesso que você tanto quer ter como companheiro?
               É uma da madrugada. Essa hora é a minha hora. Nossa hora. Vou fechar os olhos e pensar na tua pergunta. Pensa na minha também. Quem sabe um dia a gente entenda muita coisa de agora. Talvez eu entenda que as pessoas olham meio torto pra gente da nossa espécie. Talvez eu entenda o teu medo e a tua vergonha. Talvez um dia eu entenda que eu sou um cara. E que você também é.

segunda-feira, 21 de abril de 2014

COMPRE UM AMOR NA LOJINHA NA RUA DE PEDRA

Foto: Cairo Brunno (21/02/2014)
Numa rua de pedra muito estreita, na parte velha da cidade, montei eu uma lojinha. Optei pela rua de pedra porque lá é mais tranquilo e pouco movimentado. É um bairro residencial em que moram idosos e casais de meia idade. Crianças e jovens quase não há ali. Há muita sombra, sobrados e sempre um cheirinho de café que religiosamente sai das janelas nos fins de tarde, às cinco e quinze em ponto.
Se quiser algum dia localizar minha lojinha, procure a única rua de pedra da parte velha da cidade – não vou dizer o nome da rua porque você mesmo deve procurá-la com muita paciência. Aviso logo, porém: ela é comprida, portanto disponha de tempo para percorrê-la. Há nela muitos sobrados charmosos, mas o meu é o único sobrado charmoso com um compartimento inferior acessível por portas de vidro.
É nesse compartimento que funciona minha lojinha. Ao entrar nela, entre descalço. Deixe os calçados num tapete marrom e felpudo que há na calçada. O bling bling da campainha pendurada no umbral soará pelo compartimento e eu aparecerei para recebê-lo com os braços muito abertos e um sorriso cândido. Oferecerei um copo de refresco ou de água, uma xícara de café ou chá, uma lasca de bolo ou biscoitos.
Depois de conversarmos, mostrarei a você minha lojinha. Tudo sem compromisso. Exibirei as prateleiras com algumas antiguidades e conduzirei você até o balcão. Provavelmente, assim como todos os clientes – apenas gente sensível atravessa a porta da minha loja – você se encantará com o lustre de vidro salmão pendurado bem no meio do salão.
Então, eu pedirei que você se acomode nas banquetas diante do balcão. Servirei alguns morangos para você se deliciar ou bombons de chocolate branco para que você adoce seu paladar, ou talvez os dois se você demonstrar alguma generosidade e brilho no olhar. Enquanto você se regala, buscarei nos armários as caixinhas de mostruário com os produtos que vendo para que você escolha o que mais lhe apetece.
Ah! Esqueci de dizer. Eu vendo amores. São de todos os tipos, formatos, tamanhos e prazos de validade. Alguns duram apenas uma noite; esses são os mais baratos, menores e que vendem como água. Vêm numa embalagem econômica e você pode inclusive carrega-los na bolsa para a praia, um parque ou uma festa. Há também os que duram alguns meses, algumas semanas ou mesmo alguns dias. Esses ficam ao gosto do cliente e dependendo da espécie podem até ter o prazo de validade estendido...
Mas os que muito raramente saem são aqueles que duram uma vida inteira. Esses são mais caros, muito mais! Não é qualquer cliente que entra pelas portas de vidro e diz: Por favor, gostaria de um amor que dure enquanto eu andar sobre a terra! Esses são tão raros que nem vêm em embalagens comuns, como os outros. Não são tão bonitos nem tão perfeitos. Ainda assim, são mais caros e merecem um cuidado maior.
Como bom vendedor de amores, começo sempre exibindo os mais baratos e que duram menos. Minha experiência diz que se seu olho brilhar quando eu falar no preço, embora você possa dizer que quer o mais caro, no fundo você ambiciona o mais em conta, o menos elaborado. Vendo dúzias desses por dia.
Por outro lado, se você for muito insistente, sigo a exibição colocando sobre o balcão aqueles de duração média. Sugiro que, em caso de recusa pelos amores iniciais, você utilize os de validade maior. Esses têm lá seus efeitos colaterais dependendo do organismo – dores terríveis no peito em caso de doses exageradas – mas ao menos servem para que você avalie suas condições em termos de amor.
Assim, existem duas opções: comprar um amor de validade média e esperar que ele chegue ao fim para testar sua aptidão para amar, ou partir diretamente para a medida mais drástica de todas, que é adquirir um amor para a vida inteira. Mas não pense que vendo um amor assim de qualquer maneira! Há critérios, os quais só exponho se vier até minha lojinha na rua de pedra na parte velha da cidade.
Quando abro as caixinhas com amores para uma vida toda e falo de seus efeitos, há cliente que imediatamente saem pela porta sem nem se despedir. Outros me escutam até o fim pacientemente e dizem que voltarão com calma em outro momento. Outros nem esperam que eu diga todas as possibilidades e reservam logo o seu.
Mas os que realmente merecem um amor assim são os que ouvem pacientemente enquanto comem chocolate e morangos e calmamente pedem um copo d’água; acomodam-se nas banquetas como se não houvesse mais futuro – quem procura um amor para toda a vida sequer usa relógios – e predispõem-se a ler o rótulo, apalpar o produto e cheirar. Adquirir um amor para a vida inteira não é como comprar uma roupa; é como procurar um bom diamante.
Se você quiser um amor que dure para sempre, prepare-se para levar café na cama todas as manhãs, escrever cartas, ter medo e principalmente alimentar um imenso jardim de ciúmes. Aliás, se você sentir sintomas de ciúmes depois de comprar o amor mais caro e mais raro é que ele realmente está surtindo efeito. Por isso, esclareço logo que só se sente medo de perder aquilo que se tem por mais importante.
Apareça em dias frios ou quentes para degustar meus doces e meus chocolates e encher os olhos com minhas embalagens muito organizadas. Você sabe onde encontrar minha lojinha. A rua de pedra nem fica tão longe assim.