quinta-feira, 24 de abril de 2014

UMA DA MADRUGADA

            
Foto: Cairo Brunno (10/04/2013)

             Acabei de olhar o relógio de parede do corredor. É quase uma da manhã e eu ainda estou aqui, com os braços apoiados na janela, admirando a noite. Faz um silêncio quase infernal nesse apartamento. Todo mundo já foi dormir, mas eu ainda permaneço de plantão na vida com o telefone ao alcance.
            Lá embaixo, no estacionamento, está o meu velho Voyage preto. Ele é quase uma parte de mim, você sabe. Ele é quase uma parte da gente. Deu vontade de pegar as chaves e sair por aí escutando Paralamas até, quem sabe, te encontrar. Na verdade, eu te encontraria de propósito porque eu iria até a tua casa e jogaria pedrinhas na vidraça do teu quarto pra te acordar.
             Sabe aquelas coisas de filme? Pois é, isso de jogar pedrinha na janela até acordar o outro existe mesmo. O namorado daquela vizinha do apartamento da frente fez uma coisa dessas outro dia e eu achei interessante. É que eu estava estudando pra uma prova da faculdade à uma da manhã e ouvi o tec-tec das pedrinhas batendo na janela e caindo na calçada...
             O certo é que eu iria até a tua casa pra gente poder conversar dentro do carro ouvindo aquelas músicas dos anos 80 madrugada afora. Eu só gostaria de saber como foi o teu dia, com quem você conversou e como você está conseguindo controlar a alimentação por causa dessa história que surgiu agora de você ter dores no estômago.
             Eu te liguei agorinha e você me disse que precisava madrugar amanhã por conta do trabalho. Depois liguei de novo e você estava com os olhos secos, vendo tv. Eu fico me sentindo um incômodo. Um peso morto. É que eu sinto falta de companhia, de ter alguém pra perguntar como foi no ônibus lotado às seis e meia da noite, na hora do rush, e acabo ligando duas vezes a cada dez minutos.
             Na verdade, eu esqueço que você já tem casa, já tem emprego, já tem trinta anos. Eu esqueço que eu ainda estudo, ganho um salário, não uso barba pra economizar com salão e conto moedas pras cópias da faculdade, pra gasolina e pra Coca-Cola santa de todo dia. Eu esqueço que você me ama, que nós nos amamos, que brigamos todo dia e que sempre fazemos as pazes.
           É que eu te tenho tanto que eu tenho um medo sufocante de te perder. Não chega a ser um amor doentio, daqueles que levam a cometer loucuras que culminam em cadeia, mas ainda assim é um amor do meu jeito. Eu sei que eu tenho um jeito meio estúpido de ser e de dizer coisas que podem magoar e te ofender, mas é assim que eu sei te amar. Eu juro que não digo nada daquilo tudo por mal...
            Ontem, quando fui àquela loja de departamentos no centro da cidade, comprei um compacto da Marisa Monte. Fazia muito tempo que eu namorava o disco e nunca conseguia sair da loja com ele nas mãos, mas ontem foi providencial. Aquela nossa música estava lá. “Quando eu te ligar cantando aquela velha canção”... Ouvi hoje umas mil vezes e a cada uma delas a melodia tomava teu jeito, teu semblante, me fazia sentir teu cheiro...
               Aliás, eu ainda guardo um frasco do perfume que você e eu usamos quando nos conhecemos. Tem duas gotas bem no fim, mas vez por outra, quando a saudade bate, eu aspiro aquele cheiro doce e amadeirado que me lembra a tua pele naquele nosso começo tão bom e vem uma saudadezinha boa, uma vontade de fazer as folhas do calendário voltarem e tudo ser como era antes.
          Eu não sei o que é que você tem que não me beija nem me procura. Às vezes eu tenho a sensação de que você já tem outro em mente. Eu não quero ser cozinhado, levado com a barriga. Entrei nessa de cabeça pra ser amado e te fazer feliz. Ok. Muitas vezes eu quero apenas ser feliz, mas e todo o meu esforço pra te deixar bem, em paz?
            Você me perguntou outro dia se eu seria capaz de suportar todo o peso da tua popularidade caso alguém te assistisse numa das tuas peças e de repente surgisse o convite pra uma novela ou um filme e você aceitasse. Eu sinceramente digo que não. E você? Seria capaz de suportar o peso de ter um cara na porta do teu trabalho todo dia às seis da tarde te buscando com o filho de vocês no banco traseiro do carro? Agora não, que tudo é regrado, mas e quando eu for aquele homem de sucesso que você tanto quer ter como companheiro?
               É uma da madrugada. Essa hora é a minha hora. Nossa hora. Vou fechar os olhos e pensar na tua pergunta. Pensa na minha também. Quem sabe um dia a gente entenda muita coisa de agora. Talvez eu entenda que as pessoas olham meio torto pra gente da nossa espécie. Talvez eu entenda o teu medo e a tua vergonha. Talvez um dia eu entenda que eu sou um cara. E que você também é.

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