segunda-feira, 28 de abril de 2014

ELE

Foto: Cairo Brunno (08/04/2013)

       Ele nunca havia entendido que abrir o guarda-roupa era muito mais que uma atividade do cotidiano. Abrir o armário era antes de tudo ser democrático, no sentido mais comum e pejorativo da palavra. Cada vez que descerrava as portas para selecionar uma vestimenta para o dia, estava dando a si mesmo a chance de escolher.
       Escolher. Era essa a palavra que cotidianamente o movia, embora ele nem mesmo soubesse. Quando puxava uma camisa amarela ao invés da lilás estava inconscientemente dizendo que era capaz de se dar uma nova aparência, distinta daquela advinda de outra cor de camisa. Assim, selecionar era a palavra que o conduzia por cada passo.
         Seguia dessa maneira todos os dias, sem pestanejar. Nunca pensou, porém, que todas as vezes que assim agia deixava um futuro para trás. Ao sair de casa com a camisa amarela em detrimento da lilás estava abrindo mão de novos comentários, de novas chacotas, de novos elogios, de tudo aquilo que seria gerado pelo simples ato de trajar uma camisa que não fosse a amarela.
           Dia após dia as camisas eram usadas. Não ficavam acondicionadas em ordem de cores ou sob nenhuma outra técnica de ordenamento. Simplesmente estavam ali, à mão, para que ficasse a seu critério selecionar. Também era assim com os óculos que usava, com as meias, com os suspensórios, com as calças e as cuecas.
         Foi numa manhã de setembro que teve um estalo. Finamente seus olhos se abriram e ele entendeu que, assim como as roupas, a vida também era repleta de escolhas. Eram elas que o construíam a cada amanhecer. A cada novo sol que nascia os olhos se arregalavam para simplesmente escolher.
              Daquele dia em diante entendeu que a vida nada mais era que uma eterna bifurcação, onde as estradas se desmanchavam sempre em duas, paridas que eram pela necessidade de oferecer caminhos distintos. Também dois dele olhavam para as duas trilhas, e ambos curtiam um luto momentâneo, pois sabiam que dali apenas um sairia vivo. Apenas um seguiria adiante. O que ficasse teria cumprido sua missão.
              O caminho que ele deixava para trás, contudo, não era apenas uma estrada desperdiçada: era também uma história não contada. O homem que se desmanchava como fumaça após a escolha da estrada mais conveniente era ele mesmo em algum momento de sua história; era ele mesmo que poderia ter sido mas, fruto de uma escolha, não foi.
               Finalmente, entendeu que seus pés jamais deveriam ter pressa para andar por caminhos com belas paisagens. Seus olhos podiam ver a beleza nítida de cada terreno, mas sabiam que também existiam armadilhas ocultas. Para não ter que desejar voltar no tempo e mudar o passado, começou a observar todos os dias o presente e projetá-lo no futuro.
             Descobriu que caminhos têm preços e entendeu que deveria contar as moedas que existiam nos bolsos para pagá-los. Haveria sempre uma dívida, fosse no caminho mais curto e belo, fosse no mais longo e árido. Não haveria escolha que não trouxesse dores e alegrias, mas somente ele poderia decidir a ordem em que elas se concretizariam. Tudo dependeria do caminho trilhado.

quinta-feira, 24 de abril de 2014

UMA DA MADRUGADA

            
Foto: Cairo Brunno (10/04/2013)

             Acabei de olhar o relógio de parede do corredor. É quase uma da manhã e eu ainda estou aqui, com os braços apoiados na janela, admirando a noite. Faz um silêncio quase infernal nesse apartamento. Todo mundo já foi dormir, mas eu ainda permaneço de plantão na vida com o telefone ao alcance.
            Lá embaixo, no estacionamento, está o meu velho Voyage preto. Ele é quase uma parte de mim, você sabe. Ele é quase uma parte da gente. Deu vontade de pegar as chaves e sair por aí escutando Paralamas até, quem sabe, te encontrar. Na verdade, eu te encontraria de propósito porque eu iria até a tua casa e jogaria pedrinhas na vidraça do teu quarto pra te acordar.
             Sabe aquelas coisas de filme? Pois é, isso de jogar pedrinha na janela até acordar o outro existe mesmo. O namorado daquela vizinha do apartamento da frente fez uma coisa dessas outro dia e eu achei interessante. É que eu estava estudando pra uma prova da faculdade à uma da manhã e ouvi o tec-tec das pedrinhas batendo na janela e caindo na calçada...
             O certo é que eu iria até a tua casa pra gente poder conversar dentro do carro ouvindo aquelas músicas dos anos 80 madrugada afora. Eu só gostaria de saber como foi o teu dia, com quem você conversou e como você está conseguindo controlar a alimentação por causa dessa história que surgiu agora de você ter dores no estômago.
             Eu te liguei agorinha e você me disse que precisava madrugar amanhã por conta do trabalho. Depois liguei de novo e você estava com os olhos secos, vendo tv. Eu fico me sentindo um incômodo. Um peso morto. É que eu sinto falta de companhia, de ter alguém pra perguntar como foi no ônibus lotado às seis e meia da noite, na hora do rush, e acabo ligando duas vezes a cada dez minutos.
             Na verdade, eu esqueço que você já tem casa, já tem emprego, já tem trinta anos. Eu esqueço que eu ainda estudo, ganho um salário, não uso barba pra economizar com salão e conto moedas pras cópias da faculdade, pra gasolina e pra Coca-Cola santa de todo dia. Eu esqueço que você me ama, que nós nos amamos, que brigamos todo dia e que sempre fazemos as pazes.
           É que eu te tenho tanto que eu tenho um medo sufocante de te perder. Não chega a ser um amor doentio, daqueles que levam a cometer loucuras que culminam em cadeia, mas ainda assim é um amor do meu jeito. Eu sei que eu tenho um jeito meio estúpido de ser e de dizer coisas que podem magoar e te ofender, mas é assim que eu sei te amar. Eu juro que não digo nada daquilo tudo por mal...
            Ontem, quando fui àquela loja de departamentos no centro da cidade, comprei um compacto da Marisa Monte. Fazia muito tempo que eu namorava o disco e nunca conseguia sair da loja com ele nas mãos, mas ontem foi providencial. Aquela nossa música estava lá. “Quando eu te ligar cantando aquela velha canção”... Ouvi hoje umas mil vezes e a cada uma delas a melodia tomava teu jeito, teu semblante, me fazia sentir teu cheiro...
               Aliás, eu ainda guardo um frasco do perfume que você e eu usamos quando nos conhecemos. Tem duas gotas bem no fim, mas vez por outra, quando a saudade bate, eu aspiro aquele cheiro doce e amadeirado que me lembra a tua pele naquele nosso começo tão bom e vem uma saudadezinha boa, uma vontade de fazer as folhas do calendário voltarem e tudo ser como era antes.
          Eu não sei o que é que você tem que não me beija nem me procura. Às vezes eu tenho a sensação de que você já tem outro em mente. Eu não quero ser cozinhado, levado com a barriga. Entrei nessa de cabeça pra ser amado e te fazer feliz. Ok. Muitas vezes eu quero apenas ser feliz, mas e todo o meu esforço pra te deixar bem, em paz?
            Você me perguntou outro dia se eu seria capaz de suportar todo o peso da tua popularidade caso alguém te assistisse numa das tuas peças e de repente surgisse o convite pra uma novela ou um filme e você aceitasse. Eu sinceramente digo que não. E você? Seria capaz de suportar o peso de ter um cara na porta do teu trabalho todo dia às seis da tarde te buscando com o filho de vocês no banco traseiro do carro? Agora não, que tudo é regrado, mas e quando eu for aquele homem de sucesso que você tanto quer ter como companheiro?
               É uma da madrugada. Essa hora é a minha hora. Nossa hora. Vou fechar os olhos e pensar na tua pergunta. Pensa na minha também. Quem sabe um dia a gente entenda muita coisa de agora. Talvez eu entenda que as pessoas olham meio torto pra gente da nossa espécie. Talvez eu entenda o teu medo e a tua vergonha. Talvez um dia eu entenda que eu sou um cara. E que você também é.

segunda-feira, 21 de abril de 2014

COMPRE UM AMOR NA LOJINHA NA RUA DE PEDRA

Foto: Cairo Brunno (21/02/2014)
Numa rua de pedra muito estreita, na parte velha da cidade, montei eu uma lojinha. Optei pela rua de pedra porque lá é mais tranquilo e pouco movimentado. É um bairro residencial em que moram idosos e casais de meia idade. Crianças e jovens quase não há ali. Há muita sombra, sobrados e sempre um cheirinho de café que religiosamente sai das janelas nos fins de tarde, às cinco e quinze em ponto.
Se quiser algum dia localizar minha lojinha, procure a única rua de pedra da parte velha da cidade – não vou dizer o nome da rua porque você mesmo deve procurá-la com muita paciência. Aviso logo, porém: ela é comprida, portanto disponha de tempo para percorrê-la. Há nela muitos sobrados charmosos, mas o meu é o único sobrado charmoso com um compartimento inferior acessível por portas de vidro.
É nesse compartimento que funciona minha lojinha. Ao entrar nela, entre descalço. Deixe os calçados num tapete marrom e felpudo que há na calçada. O bling bling da campainha pendurada no umbral soará pelo compartimento e eu aparecerei para recebê-lo com os braços muito abertos e um sorriso cândido. Oferecerei um copo de refresco ou de água, uma xícara de café ou chá, uma lasca de bolo ou biscoitos.
Depois de conversarmos, mostrarei a você minha lojinha. Tudo sem compromisso. Exibirei as prateleiras com algumas antiguidades e conduzirei você até o balcão. Provavelmente, assim como todos os clientes – apenas gente sensível atravessa a porta da minha loja – você se encantará com o lustre de vidro salmão pendurado bem no meio do salão.
Então, eu pedirei que você se acomode nas banquetas diante do balcão. Servirei alguns morangos para você se deliciar ou bombons de chocolate branco para que você adoce seu paladar, ou talvez os dois se você demonstrar alguma generosidade e brilho no olhar. Enquanto você se regala, buscarei nos armários as caixinhas de mostruário com os produtos que vendo para que você escolha o que mais lhe apetece.
Ah! Esqueci de dizer. Eu vendo amores. São de todos os tipos, formatos, tamanhos e prazos de validade. Alguns duram apenas uma noite; esses são os mais baratos, menores e que vendem como água. Vêm numa embalagem econômica e você pode inclusive carrega-los na bolsa para a praia, um parque ou uma festa. Há também os que duram alguns meses, algumas semanas ou mesmo alguns dias. Esses ficam ao gosto do cliente e dependendo da espécie podem até ter o prazo de validade estendido...
Mas os que muito raramente saem são aqueles que duram uma vida inteira. Esses são mais caros, muito mais! Não é qualquer cliente que entra pelas portas de vidro e diz: Por favor, gostaria de um amor que dure enquanto eu andar sobre a terra! Esses são tão raros que nem vêm em embalagens comuns, como os outros. Não são tão bonitos nem tão perfeitos. Ainda assim, são mais caros e merecem um cuidado maior.
Como bom vendedor de amores, começo sempre exibindo os mais baratos e que duram menos. Minha experiência diz que se seu olho brilhar quando eu falar no preço, embora você possa dizer que quer o mais caro, no fundo você ambiciona o mais em conta, o menos elaborado. Vendo dúzias desses por dia.
Por outro lado, se você for muito insistente, sigo a exibição colocando sobre o balcão aqueles de duração média. Sugiro que, em caso de recusa pelos amores iniciais, você utilize os de validade maior. Esses têm lá seus efeitos colaterais dependendo do organismo – dores terríveis no peito em caso de doses exageradas – mas ao menos servem para que você avalie suas condições em termos de amor.
Assim, existem duas opções: comprar um amor de validade média e esperar que ele chegue ao fim para testar sua aptidão para amar, ou partir diretamente para a medida mais drástica de todas, que é adquirir um amor para a vida inteira. Mas não pense que vendo um amor assim de qualquer maneira! Há critérios, os quais só exponho se vier até minha lojinha na rua de pedra na parte velha da cidade.
Quando abro as caixinhas com amores para uma vida toda e falo de seus efeitos, há cliente que imediatamente saem pela porta sem nem se despedir. Outros me escutam até o fim pacientemente e dizem que voltarão com calma em outro momento. Outros nem esperam que eu diga todas as possibilidades e reservam logo o seu.
Mas os que realmente merecem um amor assim são os que ouvem pacientemente enquanto comem chocolate e morangos e calmamente pedem um copo d’água; acomodam-se nas banquetas como se não houvesse mais futuro – quem procura um amor para toda a vida sequer usa relógios – e predispõem-se a ler o rótulo, apalpar o produto e cheirar. Adquirir um amor para a vida inteira não é como comprar uma roupa; é como procurar um bom diamante.
Se você quiser um amor que dure para sempre, prepare-se para levar café na cama todas as manhãs, escrever cartas, ter medo e principalmente alimentar um imenso jardim de ciúmes. Aliás, se você sentir sintomas de ciúmes depois de comprar o amor mais caro e mais raro é que ele realmente está surtindo efeito. Por isso, esclareço logo que só se sente medo de perder aquilo que se tem por mais importante.
Apareça em dias frios ou quentes para degustar meus doces e meus chocolates e encher os olhos com minhas embalagens muito organizadas. Você sabe onde encontrar minha lojinha. A rua de pedra nem fica tão longe assim.