segunda-feira, 30 de junho de 2014

MULHER É UMA DROGA

               Eu confesso: não gosto de mulheres. Para falar a verdade, acho as mulheres uma droga. Abro ao mundo meu segredo, à revelia do que podem dizer os machões e as puritanas. Descobri isso muito cedo, mais que o que poderia descobrir qualquer outro homem, mas não sinto lá muita culpa. Não sinto nada além de indiferença diante do meu gosto um tanto excêntrico.
          Não gosto mesmo de mulheres. Simplesmente as adoro. Mulher é uma droga porque nos hipnotiza e embasbaca. Talvez eu pense assim porque tenha crescido rodeado por elas. Foram tantas ao longo dessa minha curta odisseia no universo! Por onde quer que eu caminhasse, lá estavam elas: a apresentadora de programa infantil pela manhã; a repórter investigativa no jornal da tarde; a mocinha da novela das oito que sofria por seu grande amor. Lá estavam mãe, avó, tias, professoras, todas numa variedade quase que inumerável, indescritível.
             Na verdade, até hoje elas são muitas. Acredito mesmo que as mulheres invadiram o mundo ganhando todos os dias uma guerra que às vezes é bem particular, levando adiante uma rixa que alguém um dia criou entre elas e nós, seus eternos súditos e dependentes – nós, homens. Proliferaram-se pelos escritórios, hospitais, salas de aula, estúdios de tevê, estantes de livros, vernissages.
           Apesar disso, o que nunca despertou muito interesse da minha parte foi o tipo garota-propaganda de comercial de cerveja, aquela moça vestindo camisetinha branca, completamente molhada e só com a parte de baixo do biquíni, que faz efervescer as veias masculinas. Podem me atacar pelo que vou dizer agora, machistas, mas na perfeição da bonitona que oferece bebida existe um quê de trivialidade, de fugacidade, de tédio: por trás do conjunto, existe uma beleza cansada que fermentou com a levedura e passou do ponto.
                Todo mundo, por mais leigo que seja, gosta de uma boa obra de arte, seja um filme, uma tela ou um clássico literário, e a razão é simples: amamos tudo que nos faz transcender, que nos eleva com um simples olhar a patamares jamais imaginados antes. Ora, quem disse que as mulheres não são arte? Mulher é música, é poesia, é visão e beleza. Mulher é êxtase. É um novo entorpecente que inventaram para nos paralisar enquanto exercem o controle do mundo.
          Gosto de mulheres que são obras de arte, não pela escultura de carne e osso, mas pela concepção interna e pelo mistério que trazem. Superficialidade não atrai ninguém. Errou quem disse que beleza não põe mesa, mas só isso não basta: é preciso ter o prazer de sentar-se diante dela. Aparência não é lá grande coisa. Ao fim e ao cabo, o que todos querem é uma boa conversa com elas, regada a profundas gargalhadas, mesmo que tudo se resolva na mesa do bar.
           Mulher boa, para mim, é mulher que anda como se carregasse nas veias o sangue de uma legítima descendente de Capitu. Viro o pescoço para olhar quem já tem na pele a incógnita por natureza. Não, não é ser vulgar. Não é querer possuir, com um desejo impetuoso e agressivo: giro a cabeça para admirar, para entender, para decifrar. Mulher boa é aquela que se torna uma pulga atrás da orelha de qualquer homem – de qualquer um mesmo, até daqueles que não se dedicam à causa.
       Mulher é definitivamente uma droga porque vicia. Não há como viver sem injetá-las cotidianamente na veia. Talvez eu nunca seja capaz de entender o que faz com que nós, homens, não gostemos das mulheres, mas as adoremos, fazendo delas verdadeiras deusas. É provável que nenhum de nós possa, estando com alguma delas, enxergar qualquer coisa a um metro de nossos narizes. É natural. Dizem mesmo que toda droga entorpece.

quarta-feira, 25 de junho de 2014

LITTLE GYPSY PRINCESS

Foto: Cairo Brunno (26.05.2014)
Sentou-se à mesa depois de arrumar os cabelos loiros atrás da orelha e recostou a cabeça na mão, preocupada. Percebi mesmo, quando sentei a seu lado, que havia ansiedade em seu rosto, embora não parecesse uma inquietação das mais profundas, daquelas que movem a humanidade a fazer descobertas incríveis e a inventar obras faraônicas. Era uma nuvem passageira, uma ressaca machadiana, um tédio em seu olhar que a deixava ainda mais encantadora.
- Hoje é o meu último dia com a idade na casa dos dez, deixou escapar com sua voz aguda.
Ouvi aquela frase e a digeri mentalmente, ainda custando a acreditar que o peso que seus olhinhos miúdos escondidos sob seus óculos vintage carregavam devia-se ao novo ano. Sondei sua expressão enquanto ela desfiava as contas de seu rosário muito particular. Tensa como toda mulher, teria medo da velhice, das rugas ou de não encontrar o homem de sua vida?
Foi mais forte que eu a lembrança de quando completei vinte anos, ou melhor, de quando eu também tive meu último dia com a idade na casa dos dez. Até então, escrevia romances tolos, ingênuos, e criava personagens que, muito embora clamem hoje para deixarem as gavetas de minha escrivaninha, permanecem trancafiados nelas. Meus últimos dias na casa dos dez foram, porém, mais quietos e menos intensos sem a adrenalina de viver no fio da navalha das responsabilidades que a maturidade exige.
O fato é que olhar para trás depois de ouvir a preocupação da menina-mulher diante de mim a respeito de sua nova idade foi um bom exercício. Foi como revirar velhas fotografias dentro de uma caixa de recordações. Enquanto aguardávamos nossos próprios compromissos, vi-me desfilando diante de mim mesmo com minha ansiedade e meus sonhos a tiracolo, aguardando a superação das fases difíceis da vida adulta e atingindo a glória através do sucesso, uma coroação justa para quem apenas vive.
Aquela menina era eu mesmo bem diante dos meus olhos, e talvez por isso eu fazia questão de admirá-la naquele momento. Não tínhamos lá léguas etárias de distância um do outro; éramos mais próximos que o que se possa imaginar, mas eu queria ensiná-la e protegê-la. Não, não era amor. Não era nada corporal, físico. Era algo equivalente à fraternidade, a um desejo oculto de vê-la sempre, como se fosse uma obra de arte caminhando sob o sol forte da cidade.
Seus olhos pequenos agigantavam-se em meus momentos de fraqueza, quando se aproximavam de mim e mostravam que aquele corpo magro e longilíneo nada mais era que o casulo que guardava sua experiência, a qual era, contraditoriamente, precoce. Da vida, certamente sabia mais que eu. Seus conselhos eram sempre precisos, certeiros e afiados. Não ou sim, eram essas suas palavras de ordem. Seu dicionário não comportava as palavras morno, frio, quieto ou qualquer outra que expressasse serenidade e sossego.
O que a tornava tão linda era uma incógnita para mim, e eu queria descobri-lo naqueles instantes em que a observava a fundo e em silêncio. Poderia ser seu gosto por cinema, por cachorros, por fotografia e por indie rock. Poderia ser sua imaginação muito fértil e sua afinidade com leituras consagradas. Poderia ser sua pouca afeição a leis e o gosto em excesso de liberdade. Poderia ser simplesmente algo de seus trejeitos de estrela de Hollywood dos anos 60, uma Audrey Hepburn loira e pós-moderna, filha do sol do Equador.
Talvez não fosse nada daquilo – nem Audrey, nem cinema, nem fotografia. Talvez fosse só seu olhar de Holly Golightly, não com a sensualidade e a ânsia por sucesso e fama daquela mulher que se pretendia de luxo, mas a beleza do olhar e a elegância que a inocência impõe. A menina que aparecia a mim beirando uma nova idade era naquele instante a fotografia exata de Capitu e Ceci, ambas no mesmo plano, num misto de enigma e doçura. Com sua longa saia lilás, seus longos cabelos loiros e a pele muito branca, era minha little gypsy princess, tão frágil que chegava a ser um bibelô.
- Fique tranquila, disse eu, tentando desfazer a nuvem que cobria seu olhar. A sua vida começa mesmo amanhã.

segunda-feira, 16 de junho de 2014

DESAMOR

Foto: Cairo Brunno (07.06.2014)
                Aonde você vai a essa hora? Não gostou da comida? Não gostou do perfume novo que eu comprei? Está fazendo as malas porquê? Você vai embora? O que eu te fiz? Eu fui a mulher mais honesta dessa cidade inteira. Lavei tuas roupas, te preparei jantar, segurei tua barra penhorando meus brincos de ouro quando te faltou emprego. Não houve briga nem desassossego. Porquê? É outra não é? Qual o nome dela? Qual o nome dessa desgraçada que está te tirando de mim?
                Vem aqui, vem. Lembra que eu te amo? Lembra que você e eu juramos ser um do outro enquanto caminhássemos sobre a terra, por pior que fosse? Quantos vendavais já enfrentamos, me diz? Quantas vezes já passamos por momentos mais dolorosos? Quantas vezes já passamos fome, frio, já ficamos descalços e nus mas mesmo assim permanecemos um ao lado do outro? Tem dedo de mulher nessa história sim, eu tenho certeza. Eu tenho faro para descobrir essas coisas.
                  E se eu descubro? E se eu encontro você com outra por aí? O que eu faço? Olha pra mim, Chico! Eu não sei ler, não sei escrever, não tenho estudo nem tenho dinheiro. O que é que eu vou fazer sem você? É difícil enxergar que você é a minha vida? Será que você não enxerga? Você é homem, é forte, é bruto como um touro. Pode trabalhar, pode carregar madeira, abrir estrada, mas e eu? Vou fazer o quê? Mesmo que eu trabalhe em casa de família, lave e passe, vai faltar o principal, que é você.
                Não vai! Fica aqui, homem! Não sai por essa noite fria procurando amor, que você já tem aqui dentro. Não sai procurando outra cama se a tua já está tão quente. Não vai se satisfazer em outro corpo, não. Pensa bem. Se ela te aceita desse jeito, quem garante que não vai aceitar outro que também seja casado, que também tenha família? Olha bem pra mim. Eu imploro, ajoelhada diante de ti porque você se tornou o meu deus. Não vai. Fica mais um pouco. Fica mais uns dias, pensa, pesa os fatos. Por favor!
             Pois muito bem. Se você quer ir, a porta está aberta. Eu tentei te prender comigo aqui deixando livre a tua saída. Se você prefere arriscar a sorte a ficar comigo debaixo do nosso teto, eu suporto o solavanco de te ver cruzar cada umbral até chegar à rua. Mas escuta bem o que eu vou dizer, Chico. Nunca mais esse corpo vai ser teu, ouviu bem? Nunca mais. Você nunca mais vai se saciar em mim. Eu deixo todos os homens do bairro, do país, do mundo se servirem no meu sexo, mas você não. E eu ainda hei de te ver feito cachorro correndo atrás de mim, louco, alucinado de desejo e tudo que eu vou fazer é chutar lama na tua cara e te atirar pedra nos lombos.
            É isso que vai acontecer, está me entendendo? Agora vai. Vai! Vai encontrar naquela vagabunda o que você não encontra em mim por não saber procurar. Mas ainda haverá mãos que vão saber correr cada poro meu e bocas pra tirar um mel que na tua terá gosto de vinagre. Essa mulher que um dia já foi tua vai ser de muitos outros e todos vão saber que você nunca foi homem. Todo mundo vai saber que você nunca passou de um moleque. Passa fora dessa casa antes que eu te abra com uma faca, antes que eu deixe viúva quem nem sequer te tem por marido ainda. Passa fora! Passa fora!

segunda-feira, 9 de junho de 2014

A VELHA ANDARILHA

Foto: Cairo Brunno (07.06.2014)
               Faminto e com muita sede, entrei na padaria envidraçada de um cruzamento movimentado no centro da cidade. Eram três da tarde. Segui imediatamente até a geladeira e saquei um suco de laranja. Caminhei até o balcão e pedi à mocinha com touca branca nos cabelos uma bela empada, bastante chamativa aos olhos e não menos dourada, que se destacava dos demais alimentos.
             Nem sequer esperei chegar até o caixa. Na fila para pagar mesmo, coloquei a comanda debaixo do braço, abri a garrafinha de suco, tomei um gole com a sede dos ermitões e mordi com intensidade o salgado, num quase beijo, querendo devorá-la de uma vez só. Meu organismo pedia seu combustível, isto é, a boa e velha comida. O que mais além daquilo que havia em minhas mãos poderia importar naquele instante? Que fossem pro inferno o conflito no Oriente Médio, as denúncias de corrupção, a pobreza e a miséria na África. Eu queria viver!
                Então, escutei o som da campainha tocando quando a porta de vidro se abriu. Barulho de rua, vapor e o bling bling seguiram-se imediatamente. Olhei. Olhei com os olhos de quem não liga para a fome, pra o desespero, para o despudor. Olhei como quem vê um espetáculo grotesco ao longe, de um belíssimo e imponente camarote, onde nada pode interferir além da fome.
                   Ela caminhou a passos muito lentos e fechou a porta logo atrás de si, retornando o silêncio e o zunido leve do ar refrigerado. Parou por alguns segundos e observou tudo ao redor com seus olhos cansados, de quem muito viveu e padeceu mais ainda. Trazia nas mãos uma sacola de plástico muito grande, cheia de bugigangas que possuíam intimamente um valor que dificilmente se poderia calcular.
                   Com os passos curtos de uma velha de sua idade, aproximou-se da moça à minha frente na fila. Perguntou se ali havia comida. Ouviu resposta positiva com uma voz compadecida da outra. Remexeu os objetos do interior da sacola e tirou dela, como da cartola de um mágico, outra sacola, recheada de papéis amarelados e cartões velhos, um dos quais – vi porque a observava com uma curiosidade magnética – estava adereçado com a logomarca de um banco.
               Perguntou, passando a mão calejada pelos cabelos brancos totalmente desalinhados, se alguém ali poderia auxiliá-la em um saque. Contou-nos que vinha de longe, mas que não queria moedinhas, fruto de mendicância; tinha ela própria alguns trocados guardados e precisava retirá-los para se alimentar. Ninguém se habilitou. Eu mesmo não. Àquela altura, eu já havia me tornado um turbilhão de emoções indescritível.
                  Enquanto a observava caminhando no interior da padaria com toda a vagarosidade possível, com toda a calma de quem sabe que não há mais nada a esperar da vida além da consequência última dela própria, efervesceu em mim uma vontade ímpar de toma-la nos braços, acolhê-la numa cama cheia de guloseimas e contar histórias que ouvi ao longo de toda uma vida, até que seus olhinhos doentes se fechassem, num descanso prolongado que entraria noite adentro.
                 Subiram lágrimas quentes – essas são as mais sinceras e mais gostosas de se derramar – e eu as reprimi instantaneamente, tomado de alguma vergonha. Era aquela velha mulher a mãe de alguém? Que histórias poderiam existir por trás daquele monte de pele, carne e ossos, guardadas dentro de seu coração enferrujado? Qual seria seu nome? Qual seria seu destino? De onde vinha e para onde poderia – querer – ir?
              Vi quando se deslocou sempre com sua sacola até o banheiro. Demorou-se um pouco ali dentro e saiu novamente. Admirou o balcão de empadas e ali entendi que não existiam trocados, nem fruto de mendicância, nem qualquer moeda admissível; existia, naquele corpo frágil de uma caminhante experiente e cansada de lutar cotidianamente pela sobrevivência no mundo do muito com poucos, o fruto da fome, do desespero, da incerteza. Existia o medo de sucumbir ao vazio da carne na próxima esquina. Existia a dor de devorar-se a si mesma pela ausência de bondade.
             Enfiei a mão nos bolsos e procurei algo além do pouco que eu tinha comigo – moedas contadas, uma garrafa vazia de suco de laranja e um lenço vazio com restos de empada – para que pudesse aplacar aquela aflição. Nada. Era eu também um caminhante que seria devorado por si mesmo. O que poderia importar minha condição de fragilidade anterior, no entanto? Eu tinha uma casa. Tinha uma família. Havia uma fruteira sortida na mesa da sala quando saí para o trabalho cedo pela manhã.
              Soltei as moedas e a comanda sobre o balcão de vidro do caixa. Joguei na lixeira as embalagens que havia em minhas mãos. A balconista catou meu dinheiro com uma avidez louca, um gesto mecânico de quem sobrevive de contar o que jamais será seu. Observei, enquanto aguardava ser liberado, o silêncio e o desprezo da mocinha de touca branca no balcão de empadas. Permanecia passiva diante da fome da pobre velha, que se mantinha de pé admirando os alimentos. Mantinha-se imóvel diante daqueles olhos famintos.
                Eu não poderia ver mais daquilo. Com os ombros pesados e um nó na garganta, deixei a padaria e apareci na rua. Não consegui olhar para trás. Havia barulho e vapor, mas nada mais interessava. Observei o relógio de pulso: três e quinze. Estava na hora de voltar ao trabalho para contar aquilo que jamais seria meu.

segunda-feira, 2 de junho de 2014

A DESPEDIDA

Foto: Cairo Brunno (27/12/2012)
Quando dei por mim, eu estava às dez da noite de um domingo abraçado a você na calçada do meu prédio. Foi um contato que se prolongou por alguns segundos a mais que o habitual. Nossos braços eram quentes, ávidos por envolver aquele outro corpo que tínhamos à disposição como se ele fosse a salvação das nossas almas, a redenção de todos os nossos pecados e o remédio para todas as nossas feridas abertas por outros amores.
Na sexta-feira, dois dias antes, nós havíamos ensaiado um abraço como aquele depois de comermos uma pizza num restaurante próximo. A diferença é que naquele domingo tudo acabou – ou teria começado? – com um beijo... O percurso dos nossos lábios foi bem lento, nada ensaiado. Primeiro, tocamos o pescoço um do outro; em seguida, o rosto e... a boca! Eu fui ao céu com aquele beijo... Era tão perfeito! Era uma boca pequena, bem desenhada, tão boa de beijar que eu só queria ficar um pouco mais.
Você tinha uma voz tão perfeita e um cheiro tão humano que eu fiquei excitado. Logo eu, que ainda era completamente inocente, pronto a casar de branco. Nunca havia sequer mostrado meu sexo a outra pessoa e já estava entrando em ebulição com um simples abraço – aliás, eu sempre tinha aquele tipo de reação quando te abraçava, e se você lembrar com detalhes vai ver que eu sempre afastava meus quadris dos teus pra que o contato perigoso daquelas nossas regiões não ocasionasse uma explosão...
Te pedi pra entrar no prédio. Você aceitou. Namoramos, você no meu colo – Eu desejei tanto esse momento! Tanto! – e eu, tímido, olhando de relance pras janelas dos outros apartamentos com medo de sermos flagrados. Eu tinha você nos meus braços, sob meu domínio. Eu, que depois de tanto jogar contigo, com a tua paciência, de fingir que não queria, fazendo de tudo pra te dispensar e atrair numa só tacada, tinha você aos meus pés.
Naquele momento eu nunca quis ter outro alguém. O que eu mais queria era ter aquela tua blusa branca toda rota pra mim. Queria a blusa pra poder dormir abraçadinho a ela, como se fosse uma extensão da tua pele quente. Assim, e somente assim, eu achava que sentiria teu abraço quando não estivéssemos juntos...
No dia seguinte, você me levou pra conhecer um novo tempo na minha vida. Achei engraçado o nome do teu bairro... Quando você me falou dele eu achei tão sugestivo, porque eu agora estava indo para um novo instante da minha existência. Tudo que você perguntou no caminho, nós dois sobre a moto, foi “Você confia em mim?” Eu respondi que sim, e pensei comigo: acha que vai fazer o quê, me raptar?
Você apontou a tua casa. Disse que não havia tido tempo para limpá-la e que em função disso íamos ao fim da rua, para a casa de um amigo que estava viajando para Brasília. Vimos um filme. Comemos. Namoramos. Você pediu que eu tirasse minha camisa porque queria sentir minha pele. Fizemos isso três vezes naquela semana. Você me presenteou com uma gravata e pediu que eu usasse quando conseguisse um trabalho num escritório.
Mas, por algum motivo, comecei a me sentir inseguro. Talvez porque um dia você foi a um bar com seus amigos e me falou de um cara que usava Lacoste e te paquerava. Talvez por te ver olhar com desejo para outros homens por onde andávamos. Talvez por um dia você ter dito a um amigo teu que falava de um rapaz “Eu quero ele”. Talvez pelas fotos do teu passado com outro homem ainda nas tuas coisas...
Em casa, diziam que você queria aventura, que queria se aproveitar de mim e me descartar. Como dito por uma personagem no filme que assistimos no primeiro dia de namoro, eu era o “caso de verão”. Era? Era. Na minha cabeça era. Comecei a imaginar você beijando o rapaz que te rondava, sempre investigando o nível de seriedade do teu namoro comigo; ou quem sabe voltando pro cara que um dia te mandou embora e que depois reapareceu pedindo uma ajuda pra salvar a própria loja; ou mesmo sentindo novamente atração pelo cara que um dia beijou e que agora era um colega de trabalho.
Fiquei paranoico. Fiquei frágil. Pena você nunca ter entendido que eu sinto medo, ainda sinto um frio na barriga por conta de uma viagem tua a trabalho. Inseguro, te liguei agora há pouco pela sétima vez para ouvir tua voz. Você disse que eu precisava me tratar. Disse que nosso amor foi uma pena. Disse que queria a sorte de um amor tranquilo, com sabor de fruta mordida... Antes, disse que encontraria alguém e que me diria, e que só depois de me comunicar beijaria – e eu completei mentalmente: abraçaria, faria café, postaria fotos, telefonaria, responderia nas redes sociais, tudo que não fez comigo... E eu, tão feliz por te ter, sem prever essa confusão toda, enviei por e-mail, no começo do dia, antes de ir correr no calçadão, uma lista de coisas que eu adoraria fazer contigo: tirar fotos, viajar pra Barcelona, andar de mãos dadas...
Esperei uma resposta e veio outra.
Eu não queria entregar os pontos, mas as tuas palavras foram tão sinceras que não me resta outra saída. Mas me responda, então: e a nossa viagem pra Europa, quando eu estivesse bem de vida? E o nosso apartamento? E a nossa viagem no universo do vestuário e da decoração infantis pro quarto do nosso filho? E o nosso filho? Eu não sei. Você vai viajar semana que vem e eu nem vou poder ligar. Me sobe uma angústia só de pensar que nunca mais vou te ver de perto, que um dia vai haver outro no teu coração e que você vai trocar meus retratos pelo de um outro alguém.
Um dia, enquanto assistíamos ao capítulo da novela das nove em que o casal principal rememorava suas melhores recordações, você disse que não levaria nenhuma boa lembrança da nossa relação. Mas foram minúcias tão doces! Como num filme, acumulam-se em camadas loucas nossas aventuras. Lembra quando você saiu do quarto para ir ao banheiro e eu coloquei almofadas sob o edredom para te pregar uma peça?
Lembra ainda da primeira vez que fomos à tua casa e depois, quando voltávamos, pegamos nossa primeira chuva juntos sobre a moto? Eu te abraçava bem apertado, com frio e completamente ensopado, mas feliz por estar com você... Lembra quando trocamos alianças quando estávamos no ônibus indo pra São Luís? E de quando eu entrei no mar pela primeira vez e você, mesmo com seus braços finos, me segurou no colo?
Realmente espero que você seja muito feliz. Quanto a mim, não me iludo mais achando que em dez anos um dia poderemos nos encontrar em alguma outra cidade e que depois saiamos para conversar e ao fim do dia tudo recomeçar. Hoje, só quero que você encontre a tua felicidade e esse amor tranquilo com sabor de fruta mordida.
Sobre mim, eu te amo muito. Ainda, meu número de telefone deixará de existir. Não quero ter a esperança de que algum dia você vai me mandar uma mensagem sabendo que não o fará. Vou sentir muita falta de te pentelhar. Vou sentir falta do teu macarrão com queijo e de beijar teu pescoço antes de você dormir ou depois que você acordar.
Pensando bem, um dia vamos nos reencontrar sim, seja numa loja, seja num shopping ou num aeroporto. Que possamos ser tão cordiais quanto você presumiu naquele dia, mas bem menos artificiais e irônicos.
Te amo pra sempre!

P.S.: enterra aquele apelido. Ele era só seu. Vou enterrá-lo também. Será melhor assim.