segunda-feira, 9 de junho de 2014

A VELHA ANDARILHA

Foto: Cairo Brunno (07.06.2014)
               Faminto e com muita sede, entrei na padaria envidraçada de um cruzamento movimentado no centro da cidade. Eram três da tarde. Segui imediatamente até a geladeira e saquei um suco de laranja. Caminhei até o balcão e pedi à mocinha com touca branca nos cabelos uma bela empada, bastante chamativa aos olhos e não menos dourada, que se destacava dos demais alimentos.
             Nem sequer esperei chegar até o caixa. Na fila para pagar mesmo, coloquei a comanda debaixo do braço, abri a garrafinha de suco, tomei um gole com a sede dos ermitões e mordi com intensidade o salgado, num quase beijo, querendo devorá-la de uma vez só. Meu organismo pedia seu combustível, isto é, a boa e velha comida. O que mais além daquilo que havia em minhas mãos poderia importar naquele instante? Que fossem pro inferno o conflito no Oriente Médio, as denúncias de corrupção, a pobreza e a miséria na África. Eu queria viver!
                Então, escutei o som da campainha tocando quando a porta de vidro se abriu. Barulho de rua, vapor e o bling bling seguiram-se imediatamente. Olhei. Olhei com os olhos de quem não liga para a fome, pra o desespero, para o despudor. Olhei como quem vê um espetáculo grotesco ao longe, de um belíssimo e imponente camarote, onde nada pode interferir além da fome.
                   Ela caminhou a passos muito lentos e fechou a porta logo atrás de si, retornando o silêncio e o zunido leve do ar refrigerado. Parou por alguns segundos e observou tudo ao redor com seus olhos cansados, de quem muito viveu e padeceu mais ainda. Trazia nas mãos uma sacola de plástico muito grande, cheia de bugigangas que possuíam intimamente um valor que dificilmente se poderia calcular.
                   Com os passos curtos de uma velha de sua idade, aproximou-se da moça à minha frente na fila. Perguntou se ali havia comida. Ouviu resposta positiva com uma voz compadecida da outra. Remexeu os objetos do interior da sacola e tirou dela, como da cartola de um mágico, outra sacola, recheada de papéis amarelados e cartões velhos, um dos quais – vi porque a observava com uma curiosidade magnética – estava adereçado com a logomarca de um banco.
               Perguntou, passando a mão calejada pelos cabelos brancos totalmente desalinhados, se alguém ali poderia auxiliá-la em um saque. Contou-nos que vinha de longe, mas que não queria moedinhas, fruto de mendicância; tinha ela própria alguns trocados guardados e precisava retirá-los para se alimentar. Ninguém se habilitou. Eu mesmo não. Àquela altura, eu já havia me tornado um turbilhão de emoções indescritível.
                  Enquanto a observava caminhando no interior da padaria com toda a vagarosidade possível, com toda a calma de quem sabe que não há mais nada a esperar da vida além da consequência última dela própria, efervesceu em mim uma vontade ímpar de toma-la nos braços, acolhê-la numa cama cheia de guloseimas e contar histórias que ouvi ao longo de toda uma vida, até que seus olhinhos doentes se fechassem, num descanso prolongado que entraria noite adentro.
                 Subiram lágrimas quentes – essas são as mais sinceras e mais gostosas de se derramar – e eu as reprimi instantaneamente, tomado de alguma vergonha. Era aquela velha mulher a mãe de alguém? Que histórias poderiam existir por trás daquele monte de pele, carne e ossos, guardadas dentro de seu coração enferrujado? Qual seria seu nome? Qual seria seu destino? De onde vinha e para onde poderia – querer – ir?
              Vi quando se deslocou sempre com sua sacola até o banheiro. Demorou-se um pouco ali dentro e saiu novamente. Admirou o balcão de empadas e ali entendi que não existiam trocados, nem fruto de mendicância, nem qualquer moeda admissível; existia, naquele corpo frágil de uma caminhante experiente e cansada de lutar cotidianamente pela sobrevivência no mundo do muito com poucos, o fruto da fome, do desespero, da incerteza. Existia o medo de sucumbir ao vazio da carne na próxima esquina. Existia a dor de devorar-se a si mesma pela ausência de bondade.
             Enfiei a mão nos bolsos e procurei algo além do pouco que eu tinha comigo – moedas contadas, uma garrafa vazia de suco de laranja e um lenço vazio com restos de empada – para que pudesse aplacar aquela aflição. Nada. Era eu também um caminhante que seria devorado por si mesmo. O que poderia importar minha condição de fragilidade anterior, no entanto? Eu tinha uma casa. Tinha uma família. Havia uma fruteira sortida na mesa da sala quando saí para o trabalho cedo pela manhã.
              Soltei as moedas e a comanda sobre o balcão de vidro do caixa. Joguei na lixeira as embalagens que havia em minhas mãos. A balconista catou meu dinheiro com uma avidez louca, um gesto mecânico de quem sobrevive de contar o que jamais será seu. Observei, enquanto aguardava ser liberado, o silêncio e o desprezo da mocinha de touca branca no balcão de empadas. Permanecia passiva diante da fome da pobre velha, que se mantinha de pé admirando os alimentos. Mantinha-se imóvel diante daqueles olhos famintos.
                Eu não poderia ver mais daquilo. Com os ombros pesados e um nó na garganta, deixei a padaria e apareci na rua. Não consegui olhar para trás. Havia barulho e vapor, mas nada mais interessava. Observei o relógio de pulso: três e quinze. Estava na hora de voltar ao trabalho para contar aquilo que jamais seria meu.

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