Foto: Cairo Brunno (07.06.2014) |
Nem
sequer esperei chegar até o caixa. Na fila para pagar mesmo, coloquei a comanda
debaixo do braço, abri a garrafinha de suco, tomei um gole com a sede dos
ermitões e mordi com intensidade o salgado, num quase beijo, querendo devorá-la
de uma vez só. Meu organismo pedia seu combustível, isto é, a boa e velha
comida. O que mais além daquilo que havia em minhas mãos poderia importar
naquele instante? Que fossem pro inferno o conflito no Oriente Médio, as
denúncias de corrupção, a pobreza e a miséria na África. Eu queria viver!
Então,
escutei o som da campainha tocando quando a porta de vidro se abriu. Barulho de
rua, vapor e o bling bling
seguiram-se imediatamente. Olhei. Olhei com os olhos de quem não liga para a
fome, pra o desespero, para o despudor. Olhei como quem vê um espetáculo
grotesco ao longe, de um belíssimo e imponente camarote, onde nada pode
interferir além da fome.
Ela
caminhou a passos muito lentos e fechou a porta logo atrás de si, retornando o
silêncio e o zunido leve do ar refrigerado. Parou por alguns segundos e
observou tudo ao redor com seus olhos cansados, de quem muito viveu e padeceu
mais ainda. Trazia nas mãos uma sacola de plástico muito grande, cheia de
bugigangas que possuíam intimamente um valor que dificilmente se poderia
calcular.
Com
os passos curtos de uma velha de sua idade, aproximou-se da moça à minha frente
na fila. Perguntou se ali havia comida. Ouviu resposta positiva com uma voz
compadecida da outra. Remexeu os objetos do interior da sacola e tirou dela,
como da cartola de um mágico, outra sacola, recheada de papéis amarelados e
cartões velhos, um dos quais – vi porque a observava com uma curiosidade
magnética – estava adereçado com a logomarca de um banco.
Perguntou,
passando a mão calejada pelos cabelos brancos totalmente desalinhados, se
alguém ali poderia auxiliá-la em um saque. Contou-nos que vinha de longe, mas
que não queria moedinhas, fruto de mendicância; tinha ela própria alguns
trocados guardados e precisava retirá-los para se alimentar. Ninguém se
habilitou. Eu mesmo não. Àquela altura, eu já havia me tornado um turbilhão de
emoções indescritível.
Enquanto
a observava caminhando no interior da padaria com toda a vagarosidade possível,
com toda a calma de quem sabe que não há mais nada a esperar da vida além da
consequência última dela própria, efervesceu em mim uma vontade ímpar de
toma-la nos braços, acolhê-la numa cama cheia de guloseimas e contar histórias
que ouvi ao longo de toda uma vida, até que seus olhinhos doentes se fechassem,
num descanso prolongado que entraria noite adentro.
Subiram
lágrimas quentes – essas são as mais sinceras e mais gostosas de se derramar –
e eu as reprimi instantaneamente, tomado de alguma vergonha. Era aquela velha
mulher a mãe de alguém? Que histórias poderiam existir por trás daquele monte
de pele, carne e ossos, guardadas dentro de seu coração enferrujado? Qual seria
seu nome? Qual seria seu destino? De onde vinha e para onde poderia – querer –
ir?
Vi
quando se deslocou sempre com sua sacola até o banheiro. Demorou-se um pouco
ali dentro e saiu novamente. Admirou o balcão de empadas e ali entendi que não
existiam trocados, nem fruto de mendicância, nem qualquer moeda admissível;
existia, naquele corpo frágil de uma caminhante experiente e cansada de lutar
cotidianamente pela sobrevivência no mundo do muito com poucos, o fruto da
fome, do desespero, da incerteza. Existia o medo de sucumbir ao vazio da carne
na próxima esquina. Existia a dor de devorar-se a si mesma pela ausência de
bondade.
Enfiei
a mão nos bolsos e procurei algo além do pouco que eu tinha comigo – moedas
contadas, uma garrafa vazia de suco de laranja e um lenço vazio com restos de
empada – para que pudesse aplacar aquela aflição. Nada. Era eu também um
caminhante que seria devorado por si mesmo. O que poderia importar minha
condição de fragilidade anterior, no entanto? Eu tinha uma casa. Tinha uma
família. Havia uma fruteira sortida na mesa da sala quando saí para o trabalho
cedo pela manhã.
Soltei
as moedas e a comanda sobre o balcão de vidro do caixa. Joguei na lixeira as
embalagens que havia em minhas mãos. A balconista catou meu dinheiro com uma
avidez louca, um gesto mecânico de quem sobrevive de contar o que jamais será
seu. Observei, enquanto aguardava ser liberado, o silêncio e o desprezo da
mocinha de touca branca no balcão de empadas. Permanecia passiva diante da fome
da pobre velha, que se mantinha de pé admirando os alimentos. Mantinha-se
imóvel diante daqueles olhos famintos.
Eu
não poderia ver mais daquilo. Com os ombros pesados e um nó na garganta, deixei
a padaria e apareci na rua. Não consegui olhar para trás. Havia barulho e vapor,
mas nada mais interessava. Observei o relógio de pulso: três e quinze. Estava
na hora de voltar ao trabalho para contar aquilo que jamais seria meu.
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