quarta-feira, 25 de junho de 2014

LITTLE GYPSY PRINCESS

Foto: Cairo Brunno (26.05.2014)
Sentou-se à mesa depois de arrumar os cabelos loiros atrás da orelha e recostou a cabeça na mão, preocupada. Percebi mesmo, quando sentei a seu lado, que havia ansiedade em seu rosto, embora não parecesse uma inquietação das mais profundas, daquelas que movem a humanidade a fazer descobertas incríveis e a inventar obras faraônicas. Era uma nuvem passageira, uma ressaca machadiana, um tédio em seu olhar que a deixava ainda mais encantadora.
- Hoje é o meu último dia com a idade na casa dos dez, deixou escapar com sua voz aguda.
Ouvi aquela frase e a digeri mentalmente, ainda custando a acreditar que o peso que seus olhinhos miúdos escondidos sob seus óculos vintage carregavam devia-se ao novo ano. Sondei sua expressão enquanto ela desfiava as contas de seu rosário muito particular. Tensa como toda mulher, teria medo da velhice, das rugas ou de não encontrar o homem de sua vida?
Foi mais forte que eu a lembrança de quando completei vinte anos, ou melhor, de quando eu também tive meu último dia com a idade na casa dos dez. Até então, escrevia romances tolos, ingênuos, e criava personagens que, muito embora clamem hoje para deixarem as gavetas de minha escrivaninha, permanecem trancafiados nelas. Meus últimos dias na casa dos dez foram, porém, mais quietos e menos intensos sem a adrenalina de viver no fio da navalha das responsabilidades que a maturidade exige.
O fato é que olhar para trás depois de ouvir a preocupação da menina-mulher diante de mim a respeito de sua nova idade foi um bom exercício. Foi como revirar velhas fotografias dentro de uma caixa de recordações. Enquanto aguardávamos nossos próprios compromissos, vi-me desfilando diante de mim mesmo com minha ansiedade e meus sonhos a tiracolo, aguardando a superação das fases difíceis da vida adulta e atingindo a glória através do sucesso, uma coroação justa para quem apenas vive.
Aquela menina era eu mesmo bem diante dos meus olhos, e talvez por isso eu fazia questão de admirá-la naquele momento. Não tínhamos lá léguas etárias de distância um do outro; éramos mais próximos que o que se possa imaginar, mas eu queria ensiná-la e protegê-la. Não, não era amor. Não era nada corporal, físico. Era algo equivalente à fraternidade, a um desejo oculto de vê-la sempre, como se fosse uma obra de arte caminhando sob o sol forte da cidade.
Seus olhos pequenos agigantavam-se em meus momentos de fraqueza, quando se aproximavam de mim e mostravam que aquele corpo magro e longilíneo nada mais era que o casulo que guardava sua experiência, a qual era, contraditoriamente, precoce. Da vida, certamente sabia mais que eu. Seus conselhos eram sempre precisos, certeiros e afiados. Não ou sim, eram essas suas palavras de ordem. Seu dicionário não comportava as palavras morno, frio, quieto ou qualquer outra que expressasse serenidade e sossego.
O que a tornava tão linda era uma incógnita para mim, e eu queria descobri-lo naqueles instantes em que a observava a fundo e em silêncio. Poderia ser seu gosto por cinema, por cachorros, por fotografia e por indie rock. Poderia ser sua imaginação muito fértil e sua afinidade com leituras consagradas. Poderia ser sua pouca afeição a leis e o gosto em excesso de liberdade. Poderia ser simplesmente algo de seus trejeitos de estrela de Hollywood dos anos 60, uma Audrey Hepburn loira e pós-moderna, filha do sol do Equador.
Talvez não fosse nada daquilo – nem Audrey, nem cinema, nem fotografia. Talvez fosse só seu olhar de Holly Golightly, não com a sensualidade e a ânsia por sucesso e fama daquela mulher que se pretendia de luxo, mas a beleza do olhar e a elegância que a inocência impõe. A menina que aparecia a mim beirando uma nova idade era naquele instante a fotografia exata de Capitu e Ceci, ambas no mesmo plano, num misto de enigma e doçura. Com sua longa saia lilás, seus longos cabelos loiros e a pele muito branca, era minha little gypsy princess, tão frágil que chegava a ser um bibelô.
- Fique tranquila, disse eu, tentando desfazer a nuvem que cobria seu olhar. A sua vida começa mesmo amanhã.

3 comentários:

  1. Palavras belas e delicadas como a Bianquinha. Boas observações e excelente texto, Cairo! :*

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    1. Este comentário foi removido pelo autor.

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    2. Micaela, só mesmo quem a conhece, como nós, sabe que ela é bem isso, né? Beijo!

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