Foto: Cairo Brunno (26.05.2014) |
Sentou-se à mesa depois
de arrumar os cabelos loiros atrás da orelha e recostou a cabeça na mão,
preocupada. Percebi mesmo, quando sentei a seu lado, que havia ansiedade em seu
rosto, embora não parecesse uma inquietação das mais profundas, daquelas que
movem a humanidade a fazer descobertas incríveis e a inventar obras faraônicas.
Era uma nuvem passageira, uma ressaca machadiana, um tédio em seu olhar que a
deixava ainda mais encantadora.
- Hoje é o meu
último dia com a idade na casa dos dez, deixou escapar com sua voz aguda.
Ouvi aquela frase
e a digeri mentalmente, ainda custando a acreditar que o peso que seus olhinhos
miúdos escondidos sob seus óculos vintage
carregavam devia-se ao novo ano. Sondei sua expressão enquanto ela desfiava as
contas de seu rosário muito particular. Tensa como toda mulher, teria medo da
velhice, das rugas ou de não encontrar o homem de sua vida?
Foi mais forte que
eu a lembrança de quando completei vinte anos, ou melhor, de quando eu também
tive meu último dia com a idade na casa dos dez. Até então, escrevia romances
tolos, ingênuos, e criava personagens que, muito embora clamem hoje para
deixarem as gavetas de minha escrivaninha, permanecem trancafiados nelas. Meus
últimos dias na casa dos dez foram, porém, mais quietos e menos intensos sem a
adrenalina de viver no fio da navalha das responsabilidades que a maturidade
exige.
O fato é que olhar
para trás depois de ouvir a preocupação da menina-mulher diante de mim a
respeito de sua nova idade foi um bom exercício. Foi como revirar velhas fotografias
dentro de uma caixa de recordações. Enquanto aguardávamos nossos próprios
compromissos, vi-me desfilando diante de mim mesmo com minha ansiedade e meus
sonhos a tiracolo, aguardando a superação das fases difíceis da vida adulta e
atingindo a glória através do sucesso, uma coroação justa para quem apenas
vive.
Aquela menina era
eu mesmo bem diante dos meus olhos, e talvez por isso eu fazia questão de
admirá-la naquele momento. Não tínhamos lá léguas etárias de distância um do
outro; éramos mais próximos que o que se possa imaginar, mas eu queria
ensiná-la e protegê-la. Não, não era amor. Não era nada corporal, físico. Era
algo equivalente à fraternidade, a um desejo oculto de vê-la sempre, como se
fosse uma obra de arte caminhando sob o sol forte da cidade.
Seus olhos
pequenos agigantavam-se em meus momentos de fraqueza, quando se aproximavam de
mim e mostravam que aquele corpo magro e longilíneo nada mais era que o casulo
que guardava sua experiência, a qual era, contraditoriamente, precoce. Da vida,
certamente sabia mais que eu. Seus conselhos eram sempre precisos, certeiros e
afiados. Não ou sim, eram essas suas palavras de ordem. Seu dicionário não
comportava as palavras morno, frio, quieto ou qualquer outra que expressasse serenidade e sossego.
O que a tornava tão
linda era uma incógnita para mim, e eu queria descobri-lo naqueles instantes em
que a observava a fundo e em silêncio. Poderia ser seu gosto por cinema, por cachorros,
por fotografia e por indie rock.
Poderia ser sua imaginação muito fértil e sua afinidade com leituras
consagradas. Poderia ser sua pouca afeição a leis e o gosto em excesso de
liberdade. Poderia ser simplesmente algo de seus trejeitos de estrela de
Hollywood dos anos 60, uma Audrey Hepburn loira e pós-moderna, filha do sol do
Equador.
Talvez não fosse
nada daquilo – nem Audrey, nem cinema, nem fotografia. Talvez fosse só seu
olhar de Holly Golightly, não com a sensualidade e a ânsia por sucesso e fama
daquela mulher que se pretendia de luxo, mas a beleza do olhar e a elegância
que a inocência impõe. A menina que aparecia a mim beirando uma nova idade era
naquele instante a fotografia exata de Capitu e Ceci, ambas no mesmo plano, num
misto de enigma e doçura. Com sua longa saia lilás, seus longos cabelos loiros
e a pele muito branca, era minha little
gypsy princess, tão frágil que chegava a ser um bibelô.
- Fique tranquila,
disse eu, tentando desfazer a nuvem que cobria seu olhar. A sua vida começa
mesmo amanhã.
Palavras belas e delicadas como a Bianquinha. Boas observações e excelente texto, Cairo! :*
ResponderExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
ExcluirMicaela, só mesmo quem a conhece, como nós, sabe que ela é bem isso, né? Beijo!
Excluir