segunda-feira, 12 de maio de 2014

APAGADA

Foto: Cairo Brunno (08/04/2014)
          Embora não tenha podido vê-las flutuando dentro do carro, Ângela sentiu as palavras saírem da boca do homem como se fossem blocos sólidos de um metal frio e desesperadoramente cortante. Os automóveis da avenida, em alta velocidade, pareceram perder o ritmo enquanto ela processava cada letra, cada sílaba. A noite ficou mais escura, o ar ficou mais pesado e surgiu um nó na garganta que subiria pelo rosto até chegar aos olhos e se materializar naquelas gotinhas transparentes que ela sabia que se não contivesse dormiriam mornas em seu colo.
          “Você é apagada. Você é tão sem brilho!”, ele disse meio sem pensar, meio já ensaiado. Falou com firmeza, disparando as letras sabendo exatamente onde atingiriam, calculada a distância exata entre o limite de seus lábios e o outro coração que pulsava a seu lado. Ela sentiu que não houve arrependimento nem remorso. Havia apenas uma decisão obscura em proferir aqueles adjetivos tão complementares.
              Ângela calou-se por um momento. Arquitetou uma revanche, pensou em dizer que era exatamente daquela forma, que se conheceram mostrando as cartas na mesa e que desde a primeira conversa deixou claro que era trancada nos corredores de sua própria alma. Resolveu calar-se para além do momento. Permaneceu contida minutos a fio enquanto digeria a opinião do companheiro.
                   Aguardou pacientemente, enquanto seguiam até sua casa, uma retratação. “Ele sempre volta atrás”, disse em pensamento para si mesma. “Aguarde. O pedido de desculpas virá”. Seguiram pela avenida, quebraram numa esquina, seguiram pela ponte, depois por outra avenida, pegaram uma rua escura e asfaltada e finalmente pararam na casa de muro baixo e portão verde de madeira. Silêncio. O cheiro de terra molhada ainda persistia depois da chuva e aumentava a sensação de solidão.
                      “Boa noite”.
                    “Boa noite”, ela respondeu, num tom grave. Abriu a porta do carro para descer. Aquele foi, então, um momento quase eterno. Era sempre essa a sensação que tinha todas as vezes que brigavam porque era massacrada pela incerteza que o companheiro fornecia com seu jeito sempre sério, sempre disposto a comandar. Era quase eterno porque, enquanto descia do carro, apurava sempre a audição, tentando, sem olhar, antever algum movimento de mão ou de braço que insinuasse que ele a puxaria, daria um abraço apertado e diria que estava arrependido e que a amava.
                      Nada.
                    Apenas o som da cidade retornando ao seus ouvidos. A visão tornando-se a da realidade ao passo que a da cena imaginada se apagava muito mais. Pisou firme na calçada. Bateu a porta do carro. Esperou, enquanto abria timidamente o portão, o som agudo da buzina para que girasse o corpo e o visse fazendo um sinal com o indicador para que se aproximasse. Caminharia lentamente, então, como se estivesse enfadada de toda a história e perguntaria com um ar de tédio o que ele poderia querer ainda se já tinham se despedido. Ele pediria perdão pelas palavras e ela cederia, fingindo-se ainda de difícil e decidida, até beijarem-se e ele finalmente sumir na esquina.
                      Nada.
               O portão rangeu e Ângela entrou em casa. A cada novo passo, pé ante pé, via seu desejo tornando-se mais obscuro, mais enevoado, mais distante. Dezenove flores ao redor da passarela de pedra até a porta, havia contado mais cedo quando saiu para encontrá-lo na calçada, seis à direita e treze à esquerda. Amarelas e lilases. A cada flor que deixava para trás sentia que era mesmo apagada e sem brilho, que era um joguete nas mãos do homem que amava – amava-o realmente? – e que precisava urgentemente tornar-se uma mulher decidida como ele gostaria que fosse e como deduziu pelos relatos pré-namoro que sua antecessora certamente era.
                      Quando ele arrancou e sumiu dobrando a esquina, ela cruzou a porta e entendeu que não haveria pedido ou perdão. Estava, no fundo, cansada. Trazia as marcas de todas as culpas que ele lhe infligia manhã após manhã bem claras nos olhos manchados de negro, nos vincos perto dos lábios, nos cabelos brancos nascidos prematuramente. Era a causadora de toda briga. Era a pior de todas as namoradas que já houve na vida. Era a que às vezes tornava-se problema. Achou que dormir e não pensar em brilho era uma boa opção. Apagou todas as luzes da casa, cobriu todos os espelhos e fechou todas as janelas para não ver os postes na rua reluzindo mais que ela.
                 A insônia, porém, fez o telefone tornar-se uma extensão de seu próprio corpo. Outrora acessório, usado em vezes tão raras que se podia contar nos dedos, já não saiu mais do bolso enquanto rondava pela casa escura, e quando muito saía era para a mesa próxima, a estante, o braço do sofá. Ficou à espreita, esperando ligação. Deixou-se ser escrava de seu interlocutor, uma cativa resignada que minuto após minuto era arrastada pela onda de uma paixão violenta.
                     O jovem coração doeu quando, entre as dez e meia e as onze ele não ligou para avisar que já estava na cama. Para distrair-se, Ângela resolveu cuidar da casa no escuro mesmo. Perguntou-se a si mesma, durante sua atividade: “O que eu fiz de errado?” Pensou em todas as sutilezas, em todos os detalhes dos dias mais próximos vividos e não achou causa para a ausência, para a indiferença.
                     Subiu-lhe um ódio opressor que apertou o peito. Passou a torturar-se com cenas de outras ocasiões que ela mesma, sentindo-se artista, desenhou e dirigiu na cabeça. Imaginou o outro telefonando para os amigos durante o expediente mesmo, sentado à mesa do escritório, desfiando algum assunto por horas e horas enquanto os papéis chegavam até formar pilhas que para sempre o engoliriam. “Se ele pode ligar para toda essa gente, por que não para mim?”, indagou-se novamente a devota, a amante, a escrava.
                   Largou o serviço pela metade. Arrastou a poeira para baixo do tapete, esqueceu da casa, dos pratos, das roupas por esticar no varal e trancafiou-se no quarto. Deitou-se sobre a cama, abraçou o travesseiro com o braço direito – sempre com ele – e pôs-se a fazer cachinhos nos cabelos usando os dedos da mão esquerda. Fixou o olhar no muito branco do teto forrado a laje e pôs-se a imaginar que foi sempre a última, a preterida em outro coração. E chorou.
              Chorou aquela indiferença amarga de quem tanto amava. “Carinho alimenta carinho”, sussurrou como um consolo, um ópio subjetivo e romântico. Imaginou seu amor indagando, enquanto viam a novela, porque já estavam distantes àquela maneira e a si mesma dizendo aquelas palavras exatamente naquela ordem, embora, ainda que invertesse uma a uma, continuassem a ecoar que carinho alimenta carinho. Viu, delirante de paixão e sonhando às cegas, a grande amiga e disse a ela que um romance subsistiria a traições, à falta de amor e ao excesso de lascívia, mas jamais à indiferença. Jamais. Uma ligação que fosse, ainda que durasse cinco segundos, ainda que apenas uma e mísera, mas que ligasse!
                     Levantou da cama, foi à sala já tonta de agonia e sentou-se sobre o sofá, o telefone ao lado. Tentou ver tevê mas o menor movimento da brisa lá fora dava-lhe a sensação de ter recebido uma chamada. Teve o impulso de discar o número dele, mas ao rememorar outras palavras duras e secas como as que ouviu mais cedo – “Nunca mais me ligue tarde da noite que eu preciso acordar às seis para ganhar o meu!” – perdeu o ânimo e retornou ao quarto.
                   Tentou desligar o telefone num misto de raiva, desespero e revolta mas tão logo ocorreu a ela a possibilidade de o outro ligar desistiu da premissa de amenizar a ansiedade e voltou a esperar como se velasse por seu messias, seu deus, seu senhor. Ouviu música, leu poemas, tudo em vão, bem sabia, mas procurou ocupar aquele vazio que era a ausência dele. Queria tão somente tapar o buraco negro que a consumia na agonia daquela espera.
                     Então, à meia noite, o telefone tocou.

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