Foto: Cairo Brunno (08/04/2014) |
Embora
não tenha podido vê-las flutuando dentro do carro, Ângela sentiu as palavras
saírem da boca do homem como se fossem blocos sólidos de um metal frio e
desesperadoramente cortante. Os automóveis da avenida, em alta velocidade,
pareceram perder o ritmo enquanto ela processava cada letra, cada sílaba. A
noite ficou mais escura, o ar ficou mais pesado e surgiu um nó na garganta que
subiria pelo rosto até chegar aos olhos e se materializar naquelas gotinhas
transparentes que ela sabia que se não contivesse dormiriam mornas em seu colo.
“Você
é apagada. Você é tão sem brilho!”, ele disse meio sem pensar, meio já
ensaiado. Falou com firmeza, disparando as letras sabendo exatamente onde
atingiriam, calculada a distância exata entre o limite de seus lábios e o outro
coração que pulsava a seu lado. Ela sentiu que não houve arrependimento nem
remorso. Havia apenas uma decisão obscura em proferir aqueles adjetivos tão
complementares.
Ângela calou-se por um momento. Arquitetou uma revanche, pensou em dizer que era
exatamente daquela forma, que se conheceram mostrando as cartas na mesa e que
desde a primeira conversa deixou claro que era trancada nos corredores de sua
própria alma. Resolveu calar-se para além do momento. Permaneceu contida minutos a fio enquanto digeria a opinião do companheiro.
Aguardou
pacientemente, enquanto seguiam até sua casa, uma retratação. “Ele sempre volta
atrás”, disse em pensamento para si mesma. “Aguarde. O pedido de desculpas
virá”. Seguiram pela avenida, quebraram numa esquina, seguiram pela ponte,
depois por outra avenida, pegaram uma rua escura e asfaltada e finalmente
pararam na casa de muro baixo e portão verde de madeira. Silêncio. O cheiro de
terra molhada ainda persistia depois da chuva e aumentava a sensação de
solidão.
“Boa
noite”.
“Boa
noite”, ela respondeu, num tom grave. Abriu a porta do carro para descer.
Aquele foi, então, um momento quase eterno. Era sempre essa a sensação que tinha todas as vezes que brigavam porque era massacrada pela incerteza que
o companheiro fornecia com seu jeito sempre sério, sempre disposto a comandar.
Era quase eterno porque, enquanto descia do carro, apurava sempre a audição,
tentando, sem olhar, antever algum movimento de mão ou de braço que insinuasse
que ele a puxaria, daria um abraço apertado e diria que estava arrependido e
que a amava.
Nada.
Apenas
o som da cidade retornando ao seus ouvidos. A visão tornando-se a da realidade
ao passo que a da cena imaginada se apagava muito mais. Pisou firme na calçada.
Bateu a porta do carro. Esperou, enquanto abria timidamente o portão, o som
agudo da buzina para que girasse o corpo e o visse fazendo um sinal com o
indicador para que se aproximasse. Caminharia lentamente, então, como se
estivesse enfadada de toda a história e perguntaria com um ar de tédio o que
ele poderia querer ainda se já tinham se despedido. Ele pediria perdão pelas
palavras e ela cederia, fingindo-se ainda de difícil e decidida, até
beijarem-se e ele finalmente sumir na esquina.
Nada.
O
portão rangeu e Ângela entrou em casa. A cada novo passo, pé ante pé, via seu
desejo tornando-se mais obscuro, mais enevoado, mais distante. Dezenove flores
ao redor da passarela de pedra até a porta, havia contado mais cedo quando saiu
para encontrá-lo na calçada, seis à direita e treze à esquerda. Amarelas e
lilases. A cada flor que deixava para trás sentia que era mesmo apagada e sem
brilho, que era um joguete nas mãos do homem que amava – amava-o realmente? – e
que precisava urgentemente tornar-se uma mulher decidida como ele gostaria que
fosse e como deduziu pelos relatos pré-namoro que sua antecessora certamente
era.
Quando
ele arrancou e sumiu dobrando a esquina, ela cruzou a porta e entendeu que não
haveria pedido ou perdão. Estava, no fundo, cansada. Trazia as marcas de todas
as culpas que ele lhe infligia manhã após manhã bem claras nos olhos manchados
de negro, nos vincos perto dos lábios, nos cabelos brancos nascidos
prematuramente. Era a causadora de toda briga. Era a pior de todas as namoradas
que já houve na vida. Era a que às vezes tornava-se problema. Achou que dormir
e não pensar em brilho era uma boa opção. Apagou todas as luzes da casa, cobriu
todos os espelhos e fechou todas as janelas para não ver os postes na rua
reluzindo mais que ela.
A
insônia, porém, fez o telefone tornar-se uma extensão de seu próprio corpo.
Outrora acessório, usado em vezes tão raras que se podia contar nos dedos, já
não saiu mais do bolso enquanto rondava pela casa escura, e quando muito saía
era para a mesa próxima, a estante, o braço do sofá. Ficou à espreita,
esperando ligação. Deixou-se ser escrava de seu interlocutor, uma cativa
resignada que minuto após minuto era arrastada pela onda de uma paixão
violenta.
O
jovem coração doeu quando, entre as dez e meia e as onze ele não ligou para
avisar que já estava na cama. Para distrair-se, Ângela resolveu cuidar da casa
no escuro mesmo. Perguntou-se a si mesma, durante sua atividade: “O que eu fiz
de errado?” Pensou em todas as sutilezas, em todos os detalhes dos dias mais
próximos vividos e não achou causa para a ausência, para a indiferença.
Subiu-lhe
um ódio opressor que apertou o peito. Passou a torturar-se com cenas de outras
ocasiões que ela mesma, sentindo-se artista, desenhou e dirigiu na cabeça.
Imaginou o outro telefonando para os amigos durante o expediente mesmo, sentado
à mesa do escritório, desfiando algum assunto por horas e horas enquanto os
papéis chegavam até formar pilhas que para sempre o engoliriam. “Se ele pode
ligar para toda essa gente, por que não para mim?”, indagou-se novamente a
devota, a amante, a escrava.
Largou
o serviço pela metade. Arrastou a poeira para baixo do tapete, esqueceu da
casa, dos pratos, das roupas por esticar no varal e trancafiou-se no quarto. Deitou-se
sobre a cama, abraçou o travesseiro com o braço direito – sempre com ele – e
pôs-se a fazer cachinhos nos cabelos usando os dedos da mão esquerda. Fixou o
olhar no muito branco do teto forrado a laje e pôs-se a imaginar que foi sempre
a última, a preterida em outro coração. E chorou.
Chorou
aquela indiferença amarga de quem tanto amava. “Carinho alimenta carinho”,
sussurrou como um consolo, um ópio subjetivo e romântico. Imaginou seu amor
indagando, enquanto viam a novela, porque já estavam distantes àquela maneira e
a si mesma dizendo aquelas palavras exatamente naquela ordem, embora, ainda que
invertesse uma a uma, continuassem a ecoar que carinho alimenta carinho. Viu,
delirante de paixão e sonhando às cegas, a grande amiga e disse a ela que um
romance subsistiria a traições, à falta de amor e ao excesso de lascívia, mas
jamais à indiferença. Jamais. Uma ligação que fosse, ainda que durasse cinco
segundos, ainda que apenas uma e mísera, mas que ligasse!
Levantou
da cama, foi à sala já tonta de agonia e sentou-se sobre o sofá, o telefone ao
lado. Tentou ver tevê mas o menor movimento da brisa lá fora dava-lhe a
sensação de ter recebido uma chamada. Teve o impulso de discar o número dele,
mas ao rememorar outras palavras duras e secas como as que ouviu mais cedo –
“Nunca mais me ligue tarde da noite que eu preciso acordar às seis para ganhar
o meu!” – perdeu o ânimo e retornou ao quarto.
Tentou
desligar o telefone num misto de raiva, desespero e revolta mas tão logo
ocorreu a ela a possibilidade de o outro ligar desistiu da premissa de
amenizar a ansiedade e voltou a esperar como se velasse por seu messias, seu
deus, seu senhor. Ouviu música, leu poemas, tudo em vão, bem sabia, mas
procurou ocupar aquele vazio que era a ausência dele. Queria tão somente tapar o buraco negro que a consumia na agonia daquela espera.
Então,
à meia noite, o telefone tocou.
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