Foto: Cairo Brunno (08/04/2013) |
Por
mais que você queira me acusar e deturpar os fatos tornando-me um algoz, eu já
não sou mais o mesmo. Ainda que as ondas das tuas palavras duras se choquem
contra as rochas da minha alma cansada e cheia de cicatrizes das tuas
chibatadas, eu não quero mais ser o mesmo de antes. Não engulo mais a
intolerância nem quero remediar ou diminuir a tua própria culpa atraindo para
mim todos os teus pecados.
Ontem
à noite, enquanto escutava cada sílaba tua ao telefone, sentia que as palavras
eram um passo lento em direção ao abismo de loucura e medo em que seríamos
atirados quando trocássemos um adeus. Seria uma caminhada vagarosa e difícil,
mas que já havíamos ensaiado tantas e tantas vezes que nos tornaríamos naquele
instante guias de nós mesmos. Estávamos trocando um bom e velho tchauzinho disfarçado sob a forma de um seja bem-vindo novamente.
Não desisti de nós. Não desisti. Apenas
preservei em mim a umidade da alma, aquilo que me mantém unido e inquebrável,
incorruptível, como se eu de barro fosse. Desisti, sim, da aridez do caminho ou
das águas em excesso, aquelas da solidão e do medo, que me arrastavam feroz e
tenazmente em direção ao vazio. Tanto te invejei por teu equilíbrio que hoje
insisto nele, que agora é meu. Como numa gangorra, estou por cima, vendo
paisagens ao longe enquanto tudo que te resta é me assistir.
Já
não quero mais toda aquela dor, nem toda aquela agonia das noites sem resposta
ou mesmo a voz aguda da secretária eletrônica. Não quero mais aquela ânsia que
me violentava e mortificava a cada ligação interrompida bruscamente pela tua
intransigência, assim como também o era com cada momento de desprezo, com cada
queixa não considerada, com cada instante de abstinência do teu sexo a que você
me submetia propositalmente por não ceder aos teus caprichos no teu tempo certo. Quero agora a paz e a
doçura das manhãs de sol de maio, aquela brisa fria do começo da manhã que traz
o cheiro dos cravos pendendo no quintal.
Digo
que agora é maio. Semana passada, aliás, já era maio. Vi o mar, brinquei na praia,
deixei meu corpo exposto ao sol e ao sal. Vi meninos correndo atrás de uma bola
na areia. Vi a imensidão do céu encontrando o mar bravio das tardes de sábado.
Senti saudades de casa mas também desejei ficar para sempre naquele corpo muito
branco que se dividia em milhões de grãos muito pequenos. Vi ao longe grandes
barcos que rumavam em direção a outros portos, como eu também poderia rumar
seguindo a felicidade.
Agora
que aos poucos estou arrumando as malas sinto uma euforia pueril latejando
dentro de mim. Talvez seja aquela alma tão solapada durante algum tempo pela
tua intransigência pululando por saber que finalmente encontrará a paz e a
liberdade que lhe foi brutalmente roubada pela paixão arrebatadora que a
carência fez germinar. Outro amor não nasceu, entenda. Tudo é culpa da
liberdade, do desejo de voar, das asas que se abrem para o horizonte depois de
tanta escravidão, de tanto cativeiro.
Quero
mais que sexo invadindo sexo. Quero mais que uma chuva branca explodindo de mim
em direção ao teu corpo ou lábios entrecortando-se e irrompendo no prazer louco
de um beijo. Mais que a salvação, quero sentir a brisa de maio enquanto caminho
pela praia com a areia ainda fria.
Preciso experimentar, ir e voltar. Chorar não. Já chorei demais por
coisas que não valiam a pena. Como poços rasos, meus olhos estão secos. Bem
melhor para mim.
Amanhã,
quando já não estivermos juntos, tomarei um ônibus qualquer. Sentarei na janela
e reviverei, sentindo o vento no rosto, todo o prazer que pode existir em ser
gente e enxergar a beleza em detalhes tão pequenos. Aí eu já não carregarei
mais na bagagem coisa alguma do que é teu. Não precisarei ficar com uma mísera
correia de uma sandália tua. Te deixarei optar pelo deserto ou pelas colinas.
Seja lá o que me restar depois da tua escolha, será meu oásis, meu paraíso.
Serei um rei em minha fortaleza ainda que meus próprios alicerces se abalem.
Serei
rei porque tenho a mim. E não há no mundo séquito melhor.
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