quinta-feira, 8 de maio de 2014

CONFISSÃO EM MAIO

Foto: Cairo Brunno (08/04/2013)
                 Por mais que você queira me acusar e deturpar os fatos tornando-me um algoz, eu já não sou mais o mesmo. Ainda que as ondas das tuas palavras duras se choquem contra as rochas da minha alma cansada e cheia de cicatrizes das tuas chibatadas, eu não quero mais ser o mesmo de antes. Não engulo mais a intolerância nem quero remediar ou diminuir a tua própria culpa atraindo para mim todos os teus pecados.
                Ontem à noite, enquanto escutava cada sílaba tua ao telefone, sentia que as palavras eram um passo lento em direção ao abismo de loucura e medo em que seríamos atirados quando trocássemos um adeus. Seria uma caminhada vagarosa e difícil, mas que já havíamos ensaiado tantas e tantas vezes que nos tornaríamos naquele instante guias de nós mesmos. Estávamos trocando um bom e velho tchauzinho disfarçado sob a forma de um seja bem-vindo novamente.
                Não desisti de nós. Não desisti. Apenas preservei em mim a umidade da alma, aquilo que me mantém unido e inquebrável, incorruptível, como se eu de barro fosse. Desisti, sim, da aridez do caminho ou das águas em excesso, aquelas da solidão e do medo, que me arrastavam feroz e tenazmente em direção ao vazio. Tanto te invejei por teu equilíbrio que hoje insisto nele, que agora é meu. Como numa gangorra, estou por cima, vendo paisagens ao longe enquanto tudo que te resta é me assistir.
               Já não quero mais toda aquela dor, nem toda aquela agonia das noites sem resposta ou mesmo a voz aguda da secretária eletrônica. Não quero mais aquela ânsia que me violentava e mortificava a cada ligação interrompida bruscamente pela tua intransigência, assim como também o era com cada momento de desprezo, com cada queixa não considerada, com cada instante de abstinência do teu sexo a que você me submetia propositalmente por não ceder aos teus caprichos no teu tempo certo. Quero agora a paz e a doçura das manhãs de sol de maio, aquela brisa fria do começo da manhã que traz o cheiro dos cravos pendendo no quintal.
               Digo que agora é maio. Semana passada, aliás, já era maio. Vi o mar, brinquei na praia, deixei meu corpo exposto ao sol e ao sal. Vi meninos correndo atrás de uma bola na areia. Vi a imensidão do céu encontrando o mar bravio das tardes de sábado. Senti saudades de casa mas também desejei ficar para sempre naquele corpo muito branco que se dividia em milhões de grãos muito pequenos. Vi ao longe grandes barcos que rumavam em direção a outros portos, como eu também poderia rumar seguindo a felicidade.
                 Agora que aos poucos estou arrumando as malas sinto uma euforia pueril latejando dentro de mim. Talvez seja aquela alma tão solapada durante algum tempo pela tua intransigência pululando por saber que finalmente encontrará a paz e a liberdade que lhe foi brutalmente roubada pela paixão arrebatadora que a carência fez germinar. Outro amor não nasceu, entenda. Tudo é culpa da liberdade, do desejo de voar, das asas que se abrem para o horizonte depois de tanta escravidão, de tanto cativeiro.
                Quero mais que sexo invadindo sexo. Quero mais que uma chuva branca explodindo de mim em direção ao teu corpo ou lábios entrecortando-se e irrompendo no prazer louco de um beijo. Mais que a salvação, quero sentir a brisa de maio enquanto caminho pela praia com a areia ainda fria.  Preciso experimentar, ir e voltar. Chorar não. Já chorei demais por coisas que não valiam a pena. Como poços rasos, meus olhos estão secos. Bem melhor para mim.
                   Amanhã, quando já não estivermos juntos, tomarei um ônibus qualquer. Sentarei na janela e reviverei, sentindo o vento no rosto, todo o prazer que pode existir em ser gente e enxergar a beleza em detalhes tão pequenos. Aí eu já não carregarei mais na bagagem coisa alguma do que é teu. Não precisarei ficar com uma mísera correia de uma sandália tua. Te deixarei optar pelo deserto ou pelas colinas. Seja lá o que me restar depois da tua escolha, será meu oásis, meu paraíso. Serei um rei em minha fortaleza ainda que meus próprios alicerces se abalem.
                    Serei rei porque tenho a mim. E não há no mundo séquito melhor.

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