sexta-feira, 13 de março de 2015

PELÍCULAS AZUIS - Capítulo 1

         - Parabéns, senhora fotógrafa, disse Marco, pousando o garfo na borda do prato. Você, além de fazer boas fotos, prepara uma massa como ninguém. Cozinheira de mão cheia.
           - Está bom?, Laura indagou, depois de tomar um gole de vinho.
          - Delicioso. Já pode inclusive casar.
    - O que está faltando é um bom partido.
           Marco apoiou os cotovelos na mesa para olhá-la mais de perto e falou, com profundidade:
           - Já achou.

         - Você tem certeza?, Marco indagou da porta, a bolsa na mão, numa última tentativa.
         Não. Laura não estava certa. Havia muito mais coisas por trás de toda aquela despedida, mas nada mais poderia ser feito. Àquela altura, sabia apenas que o afeto que um dia gerou sucumbiu lentamente, definhou, até chegar aos últimos suspiros. Desligados os aparelhos dos sentimentos, amor vegetava apenas como uma palavra vazia, cravada no peito inflamado.
           - É claro que eu tenho, ela mentiu.
      Sentada à beira da cama, não moveu os olhos. Só percebeu que Marco deixava sua vida por causa dos passos contritos no assoalho, do barulho da chave girando na fechadura e da porta da sala batendo. Aos poucos, em frações de segundo, o perfume amadeirado do outro foi desaparecendo, e muito sem perceber Laura perseguiu aquele cheiro, como que para guardá-lo para sempre.
         Quando a porta do apartamento foi fechada, estava finalmente sozinha. Era aquele o x da questão: dali em diante, tinha apenas a si mesma. Estava ferida, dolorida, sangrando na alma, mas precisava fazer-lhe companhia. Em seu peito, dividiam espaço a algoz e a vítima, a resoluta e a fragilizada. Entre as duas, escolheu a desesperançada e recolheu a alma a um canto, com a cabeça enfiada entre as pernas.
        Não havia mais um coração batendo em seu peito, mas um emaranhado de fibras musculares que haviam dado um nó tão apertado que era quase impossível respirar, e esse nó subia pelo peito até chegar à garganta, impedindo a fala e anunciando um pranto quente e denso, daqueles que parecem materializar a dor em água. Era questão de tempo até que a primeira lágrima caísse.
      Ao rolar a primeira gota, Laura sabia que era apenas a abertura das portas. O choro viria como um inimigo numa guerra, violento, destruidor, arrombando os umbrais de sua sanidade. Quase sem forças, deixou que o corpo pendesse e caísse sobre o colchão. Agarrou-se a um travesseiro e esvaiu-se em lágrimas. Ali, naquele momento, o perfume, o som dos passos, as declarações de amor, os flagrantes, os gozos, tudo vinha numa torrente violenta que fluía no sangue e esmigalhava os ossos.
              Como um animal ferido que foge instintivamente de seu predador, Laura queria buscar refúgio no conforto do que havia sido, pagando o preço que fosse. Queria correr pelo apartamento de camiseta larga e calcinha mesmo, descer pelo elevador e surgir na calçada, onde Marco deveria estar. Queria pedir a ele que ficasse. Ela era a fera atingida pelo projétil da traição; ele, paradoxalmente, seu porto seguro, onde poderia se abrigar da morte lenta de sua alma, ainda que nada fizesse sentido.
             Ficou deitada. Enquanto chorava, imaginava Marco pegando o elevador, chegando à rua, jogando a bolsa no carro e dobrando a esquina lentamente, indo embora. Talvez houvesse nele alguma dor - afinal, predadores também têm coração. E se não houvesse? E se ele tivesse fingido, mentido, atuado ao longo de três anos? E se cada palavra tivesse sido apenas uma forma de dominá-la, um caminho até seu coração?
       Foi até o banheiro impulsionada por alguma força que jamais compreenderia, talvez uma reserva de alento que deixou esquecida no fundo da mente. Entrou no box, ligou o chuveiro e deixou-se molhar, de pijama mesmo, com os cabelos ruivos ainda amarrados. Estava destruída. Seu corpo desceu deslizando as costas nas pastilhas da parede e sentou-se perto do ralo, mais ou menos como sua alma - com a cabeça entre as pernas.
         Em sua cabeça, uma música insistia em se reproduzir, como um vírus maldito que percorre a corrente sanguínea e rende as defesas lentamente. Eu perco o chão. Eu não acho as palavras. Eu ando tão triste... Era muita poesia, muita beleza incrustada em dor para aquele momento. Parecia uma overdose de sentimentalidade para quem agonizava sozinha sob a água do chuveiro misturada a lágrimas.
             Deixou que escorressem pelo ralo as carcaças daquilo que um dia existiu. Não poderia vê-las, mas queria deixá-las ali, naquele cantinho, pequenas; quem sabe poderia fazer um montinho com elas e descartá-las - gosto de beijo, amor feito depois de uma bebedeira, mãos dadas na praia, lembranças. Poderia, se a todo momento a saudade não fosse o alerta de que alguma coisa não ia bem.
             Ao deixar o banho, Laura sabia que havia no peito uma única certeza em meio a todos os cacos que restavam: ninguém nunca estaria certo ao fechar as portas para um grande amor.
               Daí, tomou uma decisão.

Confira o Capítulo 2 nesta segunda, 16 de março, a partir das 22 horas.

Nenhum comentário:

Postar um comentário